sexta-feira, 30 de março de 2007

Notícias da blogosfera

Há uns dias descobri um blogue do qual não quero deixar de fazer aqui uma referência. Chama-se "Aldeia dos Macacos" e é editado por Justin Time, um curioso pseudónimo para alguém que prefere manter o anonimato. Sabe-se que o autor vive temporariamente na Guarda (Guardosibirsk), da qual já fez alguns retratos, nos quais o elogio fácil e a condescendência andam arredados. Nada melhor do que o olhar dos outros para revermos o nosso. De resto, o blogue é graficamente muito interessante e os conteúdos destacam-se pela sobriedade, irreverência bem humorada (algumas rubricas como"prémios", "aforismos inúteis", "a idade dos porquês" e "frases a evitar num funeral" são brilhantes) e bom gosto. Mas leiam-se os textos sobre a Guarda, aqui e aqui, antes de mais. Não resisto a citar o último. Diz o autor, sobre a cidade:

-Não tem arrumadores de carros. Uma pessoa tem que se desenrasacar sozinha, por vezes tendo que escolher entre vários lugares de estacionamento (e essa é outra...)
-Não tem grafittis, salvo um caso esporádico, e muito artesanal - qualquer coisa como "amo-te Darky"(referência a um alóctone, pois aqui toda a gente é Manuel ou Maria).
- Não tem pessoal "dos sem-abrigo". Como é que uma pessoa se diverte á noite e vem com os copos? Dá pontapés nos caixotes do lixo?
-Não tem agarraditos (pelo menos não se veêm) facto que corrobora a primeira observação.
- Não tem engarrafamentos. Todo povo tem que chegar a casa a horas e levar com a conversa de familia. Tangas..
-Não tem merda de cão nos passeios. O que deixa o pessoal olhar para as montras à vontade e gastar mais do que tem. Um autêntico apelo ao consumismo.
-Tem um restaurante onde a comida é bem confeccionada, com muito boa apresentação, servida com simpatia e que não nos custa os olhos da cara(pelo menos...),fazendo o cliente sentir-se um explorador colonialista...

Pois bem, lamento desiludir o Justin time, mas a Oppidana já tem tudo isso. Todavia, com sinais distintivos próprios:
os arrumadores só aparecem de vez em quando, principalmente junto aos CTT;
é claro que há grafitis, e não só os que refere, bastando circular e olhar com atenção;
para encontrar os "agarraditos", basta parar durante o dia nas imediações do CAT, na Praça Velha e, à noite, em frente à Misericórdia;
é claro que tem engarrafamentos. Mas aqui são "diferentes", pois só acontecem entre as 17-30 e as 18.30, em ruas bem determinadas, ou quando a selecção de futebol ou um dos clubes "grandes" ganham alguma coisa;
quanto à merda de cão, concordo. Até já imaginei um slogan para enviar à senhora vereadora do Turismo: "Guarda: a única cidade sem merda (de cão) nos passeios!";
por último, bons restaurantes é coisa que realmente não abunda na cidade. Contudo, existem alguns que possuem os requisitos que o autor menciona. Só que não vou aqui fazer deles publicidade. Sobre o assunto, ao Justin Time direi: "informa-te melhor e mudarás de ideias
".

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terça-feira, 27 de março de 2007

Curtas

O amor é um cão do inferno é um blog dedicado à poesia de Charles Bukowski. Melhor: é um blog onde podem ser encontradas versões de poemas de Charles Bukowski, da autoria de Manuel A. Domingos. Que lhe dedica em exclusivo este espaço, uma vez que, informa, "a poesia de Charles Bukowski anda afastada das editoras portuguesas".
E em boa hora o fez: aqueles para quem o poeta que "transformou a vadiagem em arte" é um ilustre desconhecido, como é o caso do escriba, têm agora uma oportunidade a não desperdiçar de conhecer alguma da sua obra.

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sábado, 24 de março de 2007

Monólogo do Anjo

Estais aí. Desse lado da luz. Quis sempre descobrir-vos, sabeis? Surpreender-vos devagar nesta terra feroz e sumptuosa. Escutar as vossas preces. Comover-me com a doce fragilidade da vossa esperança. Adivinhar-vos os pensamentos. Beber-vos as emoções. Mesmo as mais secretas. Sobretudo as mais secretas. Para mim, cada dia é um caminho diferente. Uma palavra guardada que me espera. Sempre acompanhado do gracioso sussurro das aves, respondendo-vos quando o vosso campo se recusa encher-se de papoilas...
Às vezes, a luz esmorece. Porque as palavras que me procuram são palavras de crianças presas no tempo. Mas deixai-me sentar numa nuvem e dar pontapés na Lua, pois era como eu devia ter vivido a vida toda: dar pontapés até sentir um tal cansaço nas pernas que elas já não me deixassem voar.
Às vezes tenho tonturas. Quando olho para baixo, vejo sempre planícies muito brancas, intermináveis, povoadas por uma enorme quantidade de sombras. Sentado numa nuvem, na lua, ou em qualquer precipício, eu sei que as minhas asas voam para vós e as tonturas que a planície me dá são feitas por mim, de propósito, para irritar aqueles que não sabem subir e descer as montanhas geladas. Mas não quero que me ofereçam sombras. Não quero que me contem as vossas aventuras. Não quero que me escondam a vossa monstruosa inocência. Pois se fordes tocados por toda a beleza do mundo, conhecereis então a imensa crueldade que ele encerra.
Sou um desconhecido movendo-se constantemente no deserto, onde cada pegada deixa bem marcada na areia a imagem dessa outra existência em que a morte e a memória já nada significam. Mas as asas, as asas que sinto bem presas, seguras, essas, ficai a saber, podem ainda esmagar com cuidado, com extremo cuidado, dilacerar suavemente, pois nos olhos está o amor, o misterioso voo das aves que partem para o desconhecido.
Eu sei que para todos vós há um lugar por descobrir, um lugar tenebroso e cantante. Simples como é a claridade, torna-se a coisa mais difícil de encontrar. Talvez porque a distância que nos separa, longa, muito longa, seja a torre de chumbo do vosso próprio isolamento, talvez porque sentir o aparecimento da madrugada seja a origem da música onde a palavra se apaga. Criem-na. Sem medo. E agora, outros mais longe me chamam. Adeus, meus amigos. Estarei sempre, sempre convosco.

Texto incluído no guião da peça teatral Guarda, Paixão e Utopia, apresentada no TMG nos dias 26 e 27 de Novembro

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O Frio

Acordo sem saber o que me despertou - um som é improvável - talvez o silêncio quente da casa, talvez o frio procurando frinchas com os dedos aguçados do Inverno.Não encontro razão para ficar desperto nem motivos para voltar ao aconchego da cama, oscilando assim o meu sono à beira de uma revelação. Nos carvalhos lá fora levanta-se o vento - é a voz do desamparo, quantas vezes o dissemos - nenhum som é mais triste na noite do que o vento, trazendo as memórias das viagens sem regresso, quase todas as que fiz… Lá fora o vento sopra, pudesse eu dormir, eu sei eu sei que não foi nada não foi nada, podia ter sido, mas quando quase esqueço quase durmo quase nada (não foi nada não foi nada) tropeço no que afinal me salva, me resgata, me enternece, me derruba, me renasce. Não sei muito bem, mas talvez um desejo de eternidade, um misterioso desejo de sempre, de tudo, alguém a cantar do you mind if I love you forever, uma alegria silenciosa, palavras quase nenhumas, um voo crepuscular, o mundo inteiro a respirar em mim, a comunhão, um pássaro ubíquo:

Recordo-te a respirar ali
a casa no silêncio
o silêncio em ti
tu em mim
e depois não me lembro de mais nada.

Publicado na colectiva "Ar Livro", Guarda, 2004

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Habemus ópera

Apresentação no sub-palco do Grande Auditório do TMG, em estreia nacional. Mais informação sobre a montagem do espectáculo e seu significado, consultar aqui e aqui. Sobre Philip Glass, ver aqui.

Libretto de Rudolph Wurlitzer
Direcção Musical de Domenico Ricci
Encenação e espaço cénico de Américo Rodrigues
Cenografia e figurinos de Cristina Cutrale
Barítono (oficial): José Corvelo
Tenor (visitante): Sérgio Martins
Com Quarteto de S. Roque + Contrabaixo: Ricardo Tapadinhas
Soldado: António Godinho
Condenado: António Saraiva

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terça-feira, 20 de março de 2007

O ar da Guarda

Já há algum tempo que não comentava a movida social e política da Guarda. É que o silêncio é de oiro. Especialmente quando já se sabe que, por aqui, a célebre máxima* de "O Leopardo" é conta-corrente. O mesmo é dizer: "An Ancient Tale is told"... De resto, os jornais locais têm alimentado copiosamente algumas das telenovelas mais excitantes da paróquia: se a maternidade fica ou não, as eleições na Associação Comercial, o último lance florentino na direcção do Politécnico e por aí fora.
Li recentemente no "Terras da Beira" que uma série de notáveis está indignada com a ausência de um programa de comemorações dos 100 anos da inauguração do Sanatório. Pasmo, senhores, pasmo perante tal leviandade! Hei-se crer que, também para vós, perdere verba leve est? Que jornalismo é este que não procura onde deveria fazê-lo? E mais não digo. Por agora. Na mesma reportagem, a propósito das excelsas virtudes terapêuticas da atmosfera guardense, era referida uma acção conduzida há uns anos pelo NAC, numa das exposições da série "A Memória das coisas", e que consistia basicamente na criação e exibição de pequenos boiões contendo ar da Guarda.** Eis um feliz exemplo de arte pop. Mas cujo aproveitamento para outros fins requer uma estratégia de imagem para a cidade que simplesmente não existe.
Exemplo disto foram as declarações da Vereadora do Turismo, questionada sobre o assunto. Já aqui se falou com algum acinte sobre esta senhora. Relembro aos mais distraídos que a sua aparição triunfal na Câmara Municipal deveria ser evocada pelos poetas como o suave poisar de um anjo saído de um quadro pré-rafaelita: fallaci nimium ne crede lucernae. Ups! O devaneio, embora apropriado, cedo perece diante de nova mensagem, trazida por Mercúrio, apelando à razão: abundans cautela non nocet.
Retomando o fio à meada, ou seja, ao ar da Guarda, a Vereadora faz uma revelação espantosa: a tal ideia, para ser retomada, carecia de uma "remodelação". Como se as boas ideias não valessem por si, especialmente no domínio do marketing! Logo a seguir, en passant, confessa, num arremedo lapalissiano, que "precisamos (suponho que na Câmara) de uma coisa mais pequenina ou maior". Entenderam? Rematou então que "a discussão do assunto ainda não está agendada". Qual assunto? Será o relativo a uma verdadeira promoção da cidade e região, que passa por um conjunto de decisões políticas concertadas e audazes? Será a criação de uma imagem de marca, suficientemente impressiva, distintiva, vendável, que realmente induza nos agentes do mercado, nas instituições e no público em geral uma percepção atractiva da cidade, suportada por elevados índices de qualidade? Ou não será antes que tal "assunto" se tem limitado ao merchandising pindérico com t-shirts, pacotes de açúcar e chocolates?

* É preciso que alguma coisa mude para que tudo fique na mesma...
** Celebrado, um ano depois, em Dezembro de 2004, com a edição de um caderno colectivo intitulado "Ar Livro" e no qual colaborei. Nessa publicação, num texto a propósito intitulado "Ares da Guarda", escreveu Eduardo Lourenço o seguinte: vendê-los, em casa, imitar como podíamos os eternos Davos-Platz dos outros, oferecê-los aos que sofriam do "mal" de um século em vias de urbanização acelerada, lavar-lhes os pulmões nesse ar ainda não poluído da nossa provincial "montanha mágica". (...) A Guarda não se converteu na cidade onde se vinha a ares. Mas tomou consciência, e a tradição dura até hoje, que os seus "ares" eram, para quem os procurava, uma aposta de vida. Sobre este acontecimento editorial, nem uma linha na referida reportagem.

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Ay nós coitados...


A Guarda é uma das cidades portuguesas com melhores condições naturais para ser "vendida" como um sítio apelativo. Pela sua especificidade, pela memória, pelo património natural e edificado, pela posição estratégica, pelas capacidades instaladas, pela condição de finis terra. Matéria consensual, ao que parece.
Recentemente, fiquei a saber que a Câmara Municipal, através da Vereadora do Ambiente - logo colocada em alta na comunicação social local sem se saber muito bem porquê - veio anunciar uma série de intenções avulsas no domínio do marketing, englobadas num programa de promoção turística da cidade.
Após ter colocado um aparelho para surdos e uns óculos para ver em 3D, utensílios que os guardenses costumam envergar quando deparam com, ou ouvem falar um político local - invariavelmente recrutado na III Divisão política e cívica, com algumas excepções, é certo... - percebi que a autarca tinha mandado imprimir umas T Shirts com a célebre cantiga de amigo atribuída a D. Sancho, exaltando os seus amores pela judia Ribeirinha. Fiquei mais descansado. Pensei que a inscrição dizia respeito às inúmeras mulheres desempregadas ou vítimas de maus tratos domésticos que, no concelho, naturalmente vivem "en gran cuidado" pelo seu futuro ou pelo seu benemérito "amigo". Mas, no amor, todos os cuidados são poucos, ou então, deliciosamente risíveis, como se sabe.
A Vereadora, num impulso digno de nota, corre para "vender" a imagem da Guarda ao exterior. Não obstante, antes de qualquer planeamento, antes de qualquer estratégia a seguir, é fundamental que o debate se alargue e nele participem e dêm o seu contributo o maior número de cidadãos, empresas e instituições, guardenses ou não.
Ora, o critério decisivo a preencher nesta questão será o de responder a duas simples perguntas: quais as vantagens comparadas com que a Guarda se pode afirmar junto do público, isto é, que produtos irão integrar a "marca" Guarda? Qual a imagem distintiva que irá dar-lhe visibilidade, poder de atracção? Para responder a essas questões, proponho um exercício prévio. Sem pensarem muito, respondam sem medo e honestamente ao seguinte: o que tem realmente a Guarda para oferecer? Pensem bem antes de responder. Pensem no que vos levaria a deslocar muitos kilómetros para visitar uma cidade em muitos aspectos atrasada e provinciana no pior sentido possível. Pensem bem. Seriam os versos do Rei Povoador? Seria a magnitude incompreendida e ignorada da Sé? Seria uma restauração medíocre, com duas ou três excepções dignas de nota? Seria uma vida nocturna em ascensão, mas com uma oferta pouco segmentada e onde a música difundida é de uma previsibilidade bocejante? Seria a observação in loco do homem beirão, um Sísifo voluntário, como disse Miguel Torga, que ambiciona o poder e o mando, truísmo já assinalado por Gil Vicente - olhai vós bem que este sam eu, diz o Juiz da Beira. Nada de confusões ou familiaridades apressadas, portanto - características temperadas, valha a verdade, por um irredutível desejo de liberdade e sua defesa, ou por uma radical mundividência? Seria um comércio que não se modernizou, desajustado à procura e com preços incrivelmente altos? Seria o apelo da montanha, a piedosa grandeza do granito, a limpidez do ar, um paradigma que já foi medicinal mas que agora poderá ser de um inconformado meneio espiritual, ou de um irrequieta pulsão desportiva? Seria a mais que razoável oferta cultural, no entanto desacompanhada de soluções urbanísticas que a prolonguem e potencializem? Seria para simplesmente ver confirmado o insólito: não existe, numa cidade de montanha, um único circuito pedonal na zona envolvente, ou sequer uma ciclovia, nem uma programação pública e regular de actividades que promovam a ligação e a descoberta do património natural? Seria a crua imagem de uma terra ingrata e austera, quase imóvel, mas onde a naturalidade ainda pesa mais do que o artifício? Seria a louca e pueril persistência dos que decidiram ficar, certificando-se no espelho de que o seu encontro com a cidade não foi uma ilusão, e cuja puerilidade alucinada se transformou numa espécie de mistério, poeira oculta, movimento encerrado num espaço sem tempo?
Tantas perguntas, senhora Vereadora! Que tardam, e non vemos. Mas o seu ar sorridente, televisivo e asséptico, envergando a singular T shirt decerto vendida na inenarrável Loja do Concelho, seguramente já respondeu às minhas. Teme-se o pior.

Publicado no jornal "O Interior"

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segunda-feira, 12 de março de 2007

Incursões

Lagoa do Vale do Rossim

Penhas Douradas

Ontem à tarde andei pela Serra. Escolho cirurgicamente os momentos para lá ir. Sem as sazonais avalanches turísticas, em dias luminosos, com o ar agreste a espreitar logo ao fim da tarde. A escolha foi, desta vez, especialmente feliz. Ao longo do tempo, tenho mantido com a Serra uma relação de um imenso respeito. Aliás, não digo isto por acaso: experimentem um dia ser apanhados no meio de uma trovoada no Covão da Ametade. Saberão então do que falo. Retomando a narrativa, gosto de ir descobrindo a Serra aos poucos, saboreando cada nova perspectiva como um triunfo, ou como uma dádiva de um santuário onde a naturalidade esmaga um artíficio que praticamente não existe. Ontem, descobri um troço rural alternativo à estrada principal, no vale glaciar do Zêzere. Para além de ter percorrido, pela segunda vez, o fantástico trilho da Rua dos Mercadores, junto ao Cântaro Magro.
Não resisti, mais uma vez, ao circo glaciário do Covão da Ametade. É um local mágico, onde o silêncio tem uma qualidade especial, cristalina. Uma espessura que nos recorda a nossa insignificância e, graças a ela, a nossa imensidão. O seu peso é tal que qualquer ruído ganha uma amplitude como em nenhum outro lado encontrei. Decidi que iria até lá acampar dois dias durante esta semana. E subir mais uma vez ao Covão Cimeiro. Mas sobretudo fazer o percurso deslumbrante até à Lagoa dos Cântaros - cuja forma é a de um coração - pelo caminho sinalizado com pedras sobrepostas. Chegado lá, só ouvirei decerto as rãs e o vento. E TUDO, mas mesmo tudo, parecerá um sortilégio distante em que é difícil acreditar.

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Incursões - 2

Ontem à tarde fui a um desses extraordinários encontros com a paisagem de Outono, que um encadear feliz de circunstâncias torna único: um dia luminoso, sem a agitação do Verão, em que o labor incansável da Natureza se torna mais nítido e, finalmente, aquela disponibilidade interior para a fantasia e a redenção.
Desci até à barragem do Caldeirão, continuei até Videmonte e aí apanhei a estrada para Linhares. Em plena serra, virei por um caminho florestal cujo terminus é a Penha de Prados, a 1250 metros. Trata-se de uma formação rochosa granítica disposta como uma fortificação natural, uma escarpa de onde se disfruta uma vista estonteante. À direita a Guarda voltada a poente, e o início do vale de Famalicão. Depois, com dimensões ciclópicas, o Vale do Mondego, cavado a seguir aos Trinta, distinguindo-se a Faia e Cavadoude e, no cimo, o Tintinolho. Lá ao fundo o cume da Marofa e, mais longe ainda, a serra da Peña de Francia, já em Espanha. A norte espreita a linha ténue do Penedo Durão, em terras durienses. O anfiteatro do planalto beirão estende-se a perder de vista, no sopé da serra: as terras de Trancoso e de Pinhel, a Velosa, Vila Franca das Naves, a Lageosa, uma infindade de aldeias distribuídas até Celorico, que consegue distinguir-se no ponto mais à esquerda, com Fornos de Algodres a espreitar. Cá em cima, chegava o som dos badalos dos rebanhos, as vozes dos que trabalham lá em baixo nas tapadas, o silvo peculiar das pás a girar nas torres de captação de energia eólica...
A seguir desci até Prados e continuei por um troço não asfaltado - rodeado de castanheiros pejados de ouriços, nogueiras e lameiros - que vai desembocar na Rapa. Transposta a serra, eis-me com o Vale do Mondego aos pés, até Aldeia Viçosa. Um quilómetro depois, a cereja no cimo do bolo: paragem na Quinta da Ponte - um solar barroco onde agora se faz turismo de habitação, mas que foi bastante maltratado pelas tropas de Junot durante as Invasões Francesas - precisamente nas margens do Mondego. No local, passada a ponte medieval que dá o nome ao local, do lado direito, para o lado da Faia, fiz um pequeno percurso a pé até chegar ao melhor local para se disfrutar o rio, a mon avis. Trata-se de uma série de lajes dispostas sobre a água, que ali é represada graças a um pequeno dique a jusante, adquirindo assim profundidade suficiente para uns bons mergulhos e umas boas braçadas. Parte do percurso é feito por uma via em pedra que julgo ser um antigo caminho dos almocreves. Que desemboca numa magnífica cosntrução em pedra que já foi azenha. O cheiro da humidade, destilada pela terra e pelo coberto vegetal, é omnipresente nesta altura. Ali fiquei por um bocado, sentado numa laje, a ouvir a água correr, o vento a atravessar a copa das árvores, observando o rasto dos aviões cruzando-se no céu. Não é preciso mais para um pôr-do-sol de luxo, garanto-vos.
No caminho de volta, meti pelo verdejante vale acima, até à ponte romana da Mizarela. Mas antes, à beira do caminho, dei conta de uma macieira Bravo de Esmolfe, a rainha das maças. Bingo! A travagem foi de tal ordem que até uns cães que iam a passar se assustaram. Acontece que grande parte dos frutos estava tombado. Peguei num saco de plástico e, respigador improvisado, meti mãos à obra. Passados cinco minutos já estava o saco cheio. O perfume inebriante dos frutos não demorou a invadir o carro, que uma paragem na nascente do Caldeirão para encher o cantil só veio intensificar. E que tão cedo não se vai dissipar.
O perfume foi como um recado, uma marca indelével, um sinal de doçura que lentamente abriu um feixe de luz nos corredores sombrios das ruínas e da devastação. Pouca coisa, poderão dizer. Talvez não, talvez não...
PS: devido a um anormal esquecimento, não levei a câmara fotográfica. Por isso, snif, não há imagens a acompanhar este mini-périplo. Mas há males que vêm por bem: obrigou-me a trabalhar a linguagem de outra forma.

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quarta-feira, 7 de março de 2007

Do interior das rosas

Ontem passou no TMG o filme "A Flauta Mágica", de Ingmar Bergman (1975), baseada na famosa ópera de Mozart, a mais alegre e, ao mesmo tempo, mais profunda obra lírica do compositor. Trata-se, em grande parte, de uma reconstituição simbólica dos rituais de iniciação maçónica, a que se submete o príncipe Tamino, com vista à Opus Magnum. No seu caso, o amor de Pamina. Comandam a acção Sarastro, que preside ao círculo solar, e a Rainha da Noite, a mãe vingativa de Pamina. Todo o enredo é pautado pela fantasia e o maravilhoso. (Sobre o tema, ver aqui e aqui mais informação).
Como noutras ocasiões sucedeu na obra de Ingmar Bergman, nesta adaptação de "A Flauta Mágica - ópera por si amada - é notória a busca do autor pelo rigor formal, sem abdicar dos cenários fantasiosos e coloridos, com uma rara delicadeza e simplicidade, colocando a sua marca indelével na primorosa obra musical. Da mesma forma que Bergman nos transmite a sua particular leitura cinematográfica da ópera, apresenta-a como uma finíssima transcrição visual do original.

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terça-feira, 6 de março de 2007

A lógica do absurdo

Estreia amanhã no Teatro Municipal a segunda produção do Projec~, com encenação de Américo Rodrigues e interpretação de Rui Nuno. O texto é de Roland Topor, um polivalente desenhador de origem polaca. Sobre o autor, ver aqui mais informação.

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Nem grego nem troiano

Foi penoso assistir ontem ao concerto de Sérgio Godinho no Teatro Municipal da Guarda. Precisamente graças ao apreço em que tenho a sua obra e o seu percurso. No palco do Grande Auditório, o compositor/intérprete limitou-se a apresentar uma espécie de karaoke de si próprio. Sem chama, sem rasgo, sem energia, mais parecendo o "avô cantigas" a recordar as suas musiquetas a uma assistência em grande parte desejosa que o acto "cívico" acabasse. "Lembram-se desta?" "E desta?" "Vá, tomem lá mais uma chalaça política para me verem a acreditar que ainda estou em forma"... Por falar nisso, a componente especificamente musical esteve sofrível. A cargo de uma banda constituída por jovens desconhecidos, que se limitou a instrumentar o alinhamento trazido pelo "chefe". O qual se mostrou previsível, banal - com a inclusão de alguns standards ao lado de temas menos inspirados. E deixando de fora muito do que melhor o autor fez, incluindo trabalhos recentes, como por exemplo "O Irmão do Meio". SG dispôs, mesmo assim, de uma oportunidade soberana para marcar a diferença: quando apresentou dois temas a solo, com a sua guitarra, poderia ter prolongado a prestação, forçando um registo mais intimista. Sem entrar na nostalgia, sem correrias pelo palco, sem arranjos duvidosos, mas recorrendo a uma liberdade criativa plena e despojada, ao poder de algumas das suas melhores canções. Seria o momento da epifania, a razão por que este concerto seria por todos recordado com emoção. Não o fez, e, desse modo, deitou tudo a perder.
SG tem um problema sério que, ao que tudo indica, é incapaz de resolver. Ele é o produto, em termos artísticos, de determinadas circunstâncias políticas contra as quais lutou e de outras que ajudou a criar. (Por falar nisso, ainda me recordo de ter participado numa das manifestações realizadas em frente à embaixada do Brasil, quando o cantor foi detido naquele país, em 1982). De há vinte anos para cá tem tentado outros caminhos, é sabido. Mas quanto mais se tenta demarcar da sua imagem de marca, da sua matriz criativa, mais para ela é reenviado. Como se tudo o que produziu depois de "Era Uma vez um Rapaz" adquirisse o sentido de um devaneio desculpável, mas medíocre. Outros músicos da sua geração e cúmplices das mesmas lutas souberam lidar com o desgaste e a usura do tempo de modo diferente. Criando um percurso original, reafirmando a sua singularidade, ampliando a força das suas propostas, mas nunca tentando passar por aquilo que não são. No caso de SG, o seu esforço para inovar tem resultados desastrosos, mais parecendo uma fuga para à frente. Todavia, conseguiu um feito espantoso: não agradar a gregos nem a troianos...

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Borat veio à Serra

Esta é a chamada época alta do turismo de montanha. Observar os forasteiros que visitam a Guarda neste período proporciona uma série de registos deveras interessantes.
Desde logo, ressalta o aparato algo excessivo dos veículos "todo o terreno", equipados como se participassem numa expedição ao Ártico. O mesmo se diga do vestuário. Excessivo para o verdadeiro rigor do clima. Que justifica um agasalho suplementar, é claro, mas não uma autêntica mostra das últimas novidades das lojas da especialidade. É como se o desconforto que se adivinha no rosto dos forasteiros exigisse uma diferenciação "normalizada", defensiva. Aquela de quem está perto dos centros de decisão e consumo, face ao exotismo inóspito de um lugar que se calcorreia, mas não se escuta. Como um descargo de consciência sazonal, dos ricos em relação aos pobres, da agitação em relação ao silêncio, tanto mais episódico quanto mais se pressente que a matéria esmaga e é infinitamente exigente de tempo e de mistério. No fundo, vêm reivindicar uma imagem que já lhes foi vendida. E por nada deste mundo abdicariam dela. "A percepção é a realidade", dizem os gurus do marketing. Nem mais.

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Da castanha, da alquimia da tradição e outros folguedos

Na passada sexta-feira fui a Aldeia do Bispo, no concelho da Guarda, tendo como pretexto a inauguração do Museu da Castanha, que aí teve lugar. A ironia do tema é um pouco amarga. Os extensos soitos que povoavam aquela freguesia hoje mais mais não são do que memória, torsos enegrecidos pelos incêndios que devastaram a zona na última década. O espaço museológico propriamente dito é composto por dois sectores distintos. Uma parte dedicada à arte sacra local e outra em que o fruto da Fagaceae ocupa o centro das atenções. Neste propósito, são exibidos vários utensílios usados na produção, armazenamento e conservação da castanha, acompanhados de informação quanto baste sobre o ciclo natural do fruto, sua importância na alimentação, na economia e no imaginário local.
Como seria de esperar, a aldeia adquiriu uma animação suplementar, incluindo grupos musicais e um pequeno buffet numa colectividade local.
Permanece todavia uma questão com a qual me tenho debatido de há uns tempos para cá: qual a melhor estratégia, em termos criativos, para a tradição popular nas zonas rurais? Que alternativas para a dignificação de uma cultura popular enquanto meio identitário por excelência? Ora, sabe-se que, no nosso país, o mundo rural foi praticamente desmantelado a partir da década de sessenta. O processo, embora desigual e não linear, dá-se vinte anos depois por praticamente concluído. Por isso mesmo, o tema adquire particular importância. Porque as respostas poderão ser várias e nenhuma delas é inocente:
  • A restauração etnográfica pura e simples de uma realidade cultural engolida pela História. Embora útil, se rigorosa, deverá ser encarada como um meio e não um fim em si. E além disso complementar de medidas de ordem ambiental. É que a motivação para a recriação de um tipicismo inócuo é quase sempre suspeita. Porque aquilo que realmente se pretende é reconstituir um modelo ideal, um arquétipo do qual as contradições e as injustiças são convenientemente expurgadas.
  • Por outro lado, aparece a reconstituição diferida, museológica. Aqui, a identidade cultural procura-se por via da catalogação, do registo, do estudo. Já não se procura uma identidade à custa de um passado salvífico, mas o recurso a ele com fins pedagógicos.
  • Mas há ainda uma outra via, esta sem dúvida a mais ousada e exigente: a recriação da tradição. Pode combinar as duas anteriores, mas em vez de um restauro, encara as tradições do mundo rural como ponto de apoio, como inspiração para uma nova linguagem, um novo fôlego criativo. Neste ponto, poder-se-ia afirmar que a tradição já não seria o que era, mas outra coisa que talvez nunca foi. Com o benefício da dúvida, é claro.

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Boca Dada

(Ready made realizado a partir dos textos publicados nos números 4 e 5 da revista Boca de Incêndio)

Como sempre, para além dos critérios de qualidade, procurámos anjos sem mestre, portadores de mensagens cujo conteúdo já não possuímos. Algo como um fora sem dentro, uma pura exterioridade animada, uma espécie de réplica ao imediato mágico, o qual corresponderia a um dentro sem fora. O trabalho é o ritmo do punho. Para aqueles que passam o tempo a reavivar a sensação de medo para depois – invocando a segurança – a explorarem. Eis enfim o absolutismo da magia. Abrir estas veredas. Criar este espaço, entre as dobras do tempo… Apetecia-me desaparecer sem deixar rasto, deixando uma tabuleta Volto Já para enganar os tolos e os repórteres, a mãe do capuchinho vermelho, os três porquinhos da estória, o presidente de câmara. A coisa estava para quem tivesse sangue frio. Imagens soltas sucediam-se no cérebro, a uma velocidade vertiginosa. Há sempre que contar com a música do acaso, ou melhor, com a cacofonia ensurdecedora do desconhecido. Esta fronte, baixa e apoquentada, agitando pensamentos sombrios… Gatafunhos inacabados, suspensos na própria vida que teoricamente tende para o infinito. Não preciso saber tudo. Apenas o que o frio permite, e é já tanto. Pois, pois Pois, pois O caso é que ninguém sabe. E quando isso acontece já não é pouco. Esperar, permanecer, prolongar, interromper, preparar-se para qualquer coisa, não querer fazer, aborrecer-se com o que se está a fazer. Missa, baile, aula, praia, etc… Maiakovsky disse um dia que há uma zona do espírito humano que não pode ser atingida senão pela poesia, e somente pela poesia que está acordada, que muda. Ora aí está uma coisa que não se pode saber, mas que se pode ver e ouvir. In the background, the music of the people. What beauty! A prostituição é uma das profissões fundamentais, talvez aquela que resume todas as outras. Tormento e beleza. A esperança começava a ser um bem escasso, intermitente. Um adiamento de si própria. Qualquer coisa que nunca poderemos compreender. Assim vai o mundo, os países que para sempre perderam o norte, já sua voz antiga não os ilumina, venenoso vestígio. Todo o arquivo é misterioso, mas nenhum mistério pode ser arquivado. Haverá então que posicionar-se de outro modo. Aonde vais agora? De onde pensavas que vinhas? Ciclica cicatriz manuscrita no corpo. O que é que pedimos aos filmes? Pois, pois. E estivemos a ver o que se passa no filme ou a pensar na nossa avó, quer dizer, a trabalhar o tempo da vida que dizemos ser a nossa? Não sabes aonde ir, já não sabes. E na estação, à chegada, já não há ninguém à tua espera. A indiferença dos deuses é eterna. Não há lugar nem para a história nem para o progresso. O prazo para cruzamentos está esgotado. O puzzle nunca chega a completar-se, por muito que o observemos. E outras coisas mais perigosas existem para além desta escrita ou da sua sombra. Primeiramente, julga-se possuir as suficientes chaves que permitem o acesso ao interior do problema; num segundo momento intui-se que as portas se comunicam umas com as outras, formando um labirinto. Por fim, percebe-se a força do problema sobre a força da sua resolução. Palavra de águia. Finjo uma hipótese entre o não e o sim? A liberdade que a razão desconhece oferece-se a nós ao virar de cada esquina. Era o início da grande viagem, embora a educação deprima as pessoas. Silêncio enfim, absoluto.

Pedro Dias de Almeida (lido pelo próprio na apresentação da revista, em 27.12.2006)

segunda-feira, 5 de março de 2007

Revista

Edição dupla (nº 4 e 5), Dezembro de 2006

No dia 27 deste mês, pelas 18h00, será apresentado mais um número da revista Boca de Incêndio. A sessão terá lugar no Café Concerto do TMG, a cargo de Pedro Dias de Almeida, natural da Guarda, editor de cultura da revista "Visão" e colaborador da revista.
Nesta edição, a componente visual será bastante vincada, pois os trabalhos gráficos recebidos suplantaram as colaborações em forma de texto. O que veio a conferir a este número uma originalidade que, embora prevista, ultrapassou as expectativas dos editores.
Como sempre, para além dos critérios de qualidade, procurou-se assegurar a continuidade e a diversidade. A primeira, mantendo colaborações de autores reincidentes. A segunda, juntando novos contributos.
A distribuição irá ser alargada a locais específicos no estrangeiro – Universidades com departamentos de Estudos Portugueses, Associações Culturais, entre outros – para além de uma criteriosa cobertura nacional.

Edição: Aquilo Teatro
Direcção:
Américo Rodrigues, António Godinho, Maria Lino
Concepção gráfica e paginação:
Alexandre Gamelas
Colaborações (neste número)
: António Bento, António Godinho, Barbara Spielmann, Barbara Assis Pacheco, Claire Moreau, Edmundo Cordeiro, Carlos Alberto Machado, Doris Cordes-Vollert, E. M. de Melo e Castro, Joan Lazeanu, João Camilo, José Oliveira, Jorge dos Reis, José Manuel Gomes Pinto, Kerstin Franke-Gneuss, Susann Becker, Tiago Rodrigues e Vítor Pomar.

pedidos para:
aquilo.teatro@sapo.pt bocadeincendio@clix.pt
ou Livraria Leitura

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Curtas

Manuel A. Domingos, professor e poeta de Manteigas, é autor do blogue Meia Noite Todo o Dia. Descoberta recente e cúmplice. Trata-se de um espaço essencialmente literário, onde o Manuel publica textos seus, pequenas recensões, crítica de espectáculos e divulgação de edições e eventos literários. Além disso, remete para um outro blogue do mesmo autor -Versões - onde são publicados poemas traduzidos pelo próprio, a partir sobretudo de autores hispânicos e anglo-saxónicos. Destaco este belíssimo excerto de A luz surge onde nenhum sol brilha, de Dylan Thomas (1914-1953):

A luz surge onde nenhum sol brilha…
A luz surge em lugares secretos,
Nos limites do pensamento, onde o seu aroma surge sob a chuva;
Quando a lógica morre,
O segredo da terra cresce através dos olhos,
E o sangue jorra do sol;
Sobre os campos destruídos, a madrugada detém-se.

Mais um favorito, a partir de agora, no Boca de Incêndio. O gosto será nosso.

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Sinais

Há uns dias atrás pude dar conta de algo nunca visto na Guarda: um arrumador de carros. Os mais cínicos poderão dizer que tal ocorrência é mais um sintoma de urbanidade, que tardava em chegar a uma pequena cidade ainda marcada por uma ruralidade degradada. Para mim, o fundamental é ter percebido de imediato que esse arrumador é exactamente igual aos que invadiram Lisboa ou Porto. O olhar é o mesmo. O estado de necessidade idem. O mesmo se diga da suave extorsão com que angariam os meios para sutentar a sua adição, promovendo, sem o saberem, uma espécie de taxa consuetudinária destinada a satisfezer fins próprios de quem a recolhe. Uma espécie de imposto do vício, da mesma forma que certos grupos terroristas utilizavam o célebre "imposto revolucionário" - pagamento exigido às empresas e comerciantes, em troca de protecção - para se financiarem. Retomando a ideia inicial, a espantosa identidade de procedimentos destes arrumadores provém de um único factor: a necessidade. Ela vence o medo, a conveniência. Triunfa sobre qualquer barreira geográfica ou sociológica. É assim.

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Êxodus

Fui ver a última produção teatral do Aquilo. A peça chama-se "Êxodo Rural: Rural Industrial", com encenação de Bernhard Bub. Um espectáculo visualmente poderoso, graças a uma complexa estrutura cenográfica, em metal, onde foram acoplados vários maquinismos, instrumentos de percussão e adereços mecânicos. Decerto se pretendeu reproduzir um estaleiro de obra pós-industrial, onde as funcionalidades cénicas se multiplicassem. De realçar igualmente a banda sonora, que conseguiu evocar as ambiências pretendidas.
No entanto, notam-se aspectos menos conseguidos. Desde logo, ao nível da direcção de actores, sendo notório que estes, em alguns momentos, deambulassem de forma errática pelo espaço, numa completa descoordenação de movimentos. Dando a entender que não havia marcações específicas para esses períodos.
Por outro lado, o espectáculo enferma de um problema estrutural que já havia detectado nas últimas produções dos Fura del Baus: uma sucessão de efeitos - espectaculares, é certo - mas sem qualquer fio narrativo que os enquadre, como se o artifício valesse por si próprio. Ora, no teatro, o artifício só é entendível se ao serviço da naturalidade. De outra forma, o actor desaparece, substituído por uma série de automatismos de ordem técnica.
Mas há ainda um equívoco fundamental na arquitectura desta peça: uma ingenuidade tributária de Rousseau, que inquina definitivamente qualquer suposto propósito pedagógico associado. No texto que acompanha o espectáculo pode ler-se: Nós próprios, perante a onda industrial do progresso, temos a sensação que este desenvolvimento nos divide em duas partes e que nos poderá custar as nossas origens, a nossa cultura e até a nossa própria existência. (...) Por entre o barulho da "máquina" os humanos ainda procuram a sua sorte. Como se poderá depreender, este discurso sinaliza um retorno de 200 anos, transportando-nos aos luddites - um movimento nascido da Inglaterra, no início do séc. XIX, contra a mecanização da indústria têxtil e que promovia a destruição pura e simples das máquinas - e ao inefável bom selvagem. Ignora-se completamente a modernidade - com a sua apologia da máquina, a descentralização do objecto artístico, o nihilismo como condição moderna por excelência - propondo-se um retorno a uma naturalidade que a própria peça desmente, enquanto proposta artística.
Dois pormenores ainda.
Em primeiro lugar: a colocação da palavra Pátria, em letras gigantes, no topo da estrutura, como instância repressiva, é de um mau gosto inqualificável. Faria sentido há 30 anos atrás, no contexto da época. Hoje é um simples erro grosseiro de casting. Não é a "Pátria" que oprime, mas a avidez, a impunidade, a mediocridade sufragada, a desresponsabilização generalizada, os micro-medos que tomaram conta de nós, que infantilizam e armadilham o desempenho da cidadania.
Em segundo lugar, e como não podia deixar de ser, o "politicamente correcto" faz a sua aparição triunfal, neste excerto do texto atrás mencionado: Até que um muro de arame farpado cercou a Europa, fingindo a salvação do status quo e impedindo a entrada de outros povos, outras culturas mais pobres. Repare-se que não está só em causa a entrada de "outros povos" , mas também de "culturas mais pobres", assumindo-se um irresponsável e piedoso - embora camuflado - eurocentrismo assistencial, produto da mesma má-consciência que leva a relativizar o terrorismo, por exemplo, ou a desculpabilizar a hostilidade dos tais povos que não admitem a "diferença" da Europa.

Publicado no jornal "O Interior"

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domingo, 4 de março de 2007

Curtas

O programa Café Mondego continua a ir para o ar todos os sábados, a partir das 10.00 horas, na Rádio Altitude. Américo Rodrigues faz as honras da casa: um moderador nada moderado, como ele próprio disse. Ora ouçam então uma hora de tertúlia em que as conversas são mesmo como as cerejas. Já agora, recomendo também uma espreitadela ao blogue homónimo, assinado pelo mesmo autor. Aqui. Uma mais-valia na blogosfera guardense. No espaço do antigo café propriamente dito está agora uma óptica, depois de lá terem estado duas filiais bancárias e um esteticista. Para quando o reerguer da sala de visitas da cidade? Para já, contentemo-nos com a memória.

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A importância da Leitura

a propósito da Comunidade de Leitores do Teatro Municipal da Guarda

As Comunidades de Leitores, com esse nome ou com outro, mas com fins idênticos, têm-se multiplicado em Portugal de há uns anos para cá. Inicialmente, constituíram-se em livrarias – na Barata, na Ler Devagar, na Almedina (a do Atrium Saldanha tornou-se referência), p.ex. – depois em Associações e Sociedades Literárias, sobretudo em Lisboa e Porto. Posteriormente o modelo tem vindo a ser adoptado por instituições culturais como a Culturgest (outra referência incontornável), bibliotecas públicas e escolas. Há também comunidades de leitores orientadas para domínios específicos, de que é exemplo a relativa a textos filosóficos, na Universidade do Minho.
Conforme se pode ler na apresentação da comunidade organizada na livraria Almedina, a razão fundamental para a existência destes eventos pode resumir-se ao seguinte: Porque ler é uma forma de resistência...Porque ler é uma forma de partilha...Porque cada leitor tem direito à comunhão com outros leitores e com os autores... Acrescentaria que essa partilha aberta é necessariamente igualitária na forma e desigual no conteúdo. Onde o objectivo não é assegurar uma mera troca de preferências literárias, ou de subjectividades, mas a criação de uma imperceptível narrativa, partindo daí. Não obstante, ainda que o cenário sejam as preferências dos leitores, o motivo é uma leitura transfigurada, filtrada pela paleta de um impressionista e revelada como uma epifania. Não se trata de uma descrição narcísica, mas de uma inscrição onde a linguagem é um pano cheio de buracos. Uma comunidade de leitores pode ser a prova de que não se lê unicamente "para", mas também "por causa", como um corsário sem bandeira, numa bárbara demonstração de um apetite de abordagem ou do abandono de uma condição demasiado humana, que não revela "boas pessoas", mas pessoas que querem pensar noutro lugar, na língua crepuscular de Sherazade. Neste ponto, seria interessante encarar uma comunidade de leitores como um retorno a um tempo onde a leitura era efectuada em voz alta – até ao séc. XVIII – adivinhando-se a sua fruição colectiva, sem perder a sua qualidade intrinsecamente íntima, bem como a presença regular dos autores.
Tenho participado regularmente na Comunidade de Leitores organizada pelo TMG desde praticamente o seu início. Uma iniciativa estimulante e inspiradora, assim creio, para quem nela participou. No entanto, à semelhança do que acontece noutras realizações similares, seria interessante convidar um autor para algumas das sessões, bem como suscitar a discussão colectiva de uma obra previamente determinada na sessão anterior.

Publicado na revista “Hora TMG”, Outubro/Novembro/Dezembro de 2006

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The day after

Ontem foi a estreia do espectáculo Guarda, Paixão e Utopia, uma co-produção TMG/ACERT, integrada nas comemorações do 807º aniversário da cidade e já aqui anunciada. A peça foi muito bem recebida pelo público, como espero o venha a ser também hoje. Como tive oportunidade de escrever na folha de sala do espectáculo, a propósito da concepção do guião, a opção seguida foi a criação de uma ideia “da” Guarda “para” a Guarda: uma narrativa não documental, diacrónica, baseada no “real”, mas colocando-o ao serviço das finalidades próprias de um espectáculo teatral, com forte componente musical e coreográfica. Arquitectada segundo uma tensão dialéctica entre um discurso optimista e outro pessimista – o Anjo da Guarda e o Velho - resolvida num clímax final absolutamente surpreendente. Concluída a apresentação, algumas reflexões:
  • desde logo, o próprio processo de produção. Esta é uma obra colectiva por excelência, com cerca de 250 pessoas envolvidas, a grande maioria pertencente a colectividades locais. Mas nem por isso as dificuldades inerentes à reunião, num projecto artístico, de tanta gente, se pareceram sentir. É simplesmente espantoso observar o resultado produzido com os mais diversos contributos artísticos, técnicos e logísticos, como se de uma só voz se tratasse. Grande parte do mérito, há que reconhecê-lo, vai para a direcção artística do projecto. Mas nada disto seria possível sem um prévio e demorado trabalho de apoio e consolidação das colectividades envolvidas.
  • esta peça pode muito bem marcar uma nova etapa na consciência cívica da Guarda. Não é impunemente que se congregam vários grupos de teatro, ranchos, filarmónicas, coros, fanfarras, actores, etc., ao serviço de uma proposta teatral única, talvez a nível nacional. Como se a generosidade e o talento de tanta gente tivessem brilhado com uma magnitude imprevista. Mas sinaliza sobretudo a afirmação da cultura como agente primeiro de qualificação e desenvolvimento. Aqui como em qualquer outro local. Talvez aqueles que negavam esta evidência reconsiderem as suas posições. Há batalhas que se vencem aos pontos. Até todos perceberem que ninguém perde.
  • o meu contributo, para além da co-autoria do guião, passou também pela representação: o poeta que inaugura a luz. Foi, sem dúvida, das experiências mais gratificantes em que tomei parte neste cidade.

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Espectáculo!



Co-produção TMG e Trigo Limpo Teatro ACERT para a Câmara Municipal da Guarda


DOM 26 e SEG 27 | 21h30 | Grande Auditório do TMG

texto António Godinho, Américo Rodrigues e Honorato Esteves
coordenação geral e dramaturgia
Américo Rodrigues
direcção artística
José Rui Martins
direcção musical
César Prata
direcção técnica
Alberto Lopes
figurinos
José Rosa
cenografia e adereços
Victor Sá Machado


Ver notícia completa no blogue do TMG.

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Dogville

Ao que tudo indica, o blogue "Guarda Mal" acabou os seus dias. Muitos guardenses, nos quais me incluo - e não só - tinham-se habituado a reconhecer neste espaço uma lufada de ar fresco no quietismo acrítico que domina a vida da cidade. Um autêntico serviço público. Num exercício atento e informado, o blogue foi dando a conhecer aos cidadãos aquilo de que uma imprensa local geralmente domesticada e medíocre não fala. Nas pequenas cidades como esta, existe frequentemente um pacto social invisível, que vai preservando a mentira até onde pode. Mais: dá azo a que essa mentira paire como um manto regulador, como a única estratégia de sobrevivência, como um dogma, como uma regra a que não se pode fugir. Esta espécie de suave omertá tem efeitos devastadores para o verdadeiro crescimento da cidade.
A medida da importância do blogue pôde ser medida pelo tipo e intensidade das reacções adversas que desencadeou e que acompanhei: de casta, corporativas, de feudos, etc. Comum a todas elas, o ódio à existência de um verdadeiro espaço público, um fórum transparente, um denominador mínimo comum e tendencialmente neutro onde as questões respeitantes à urbe se discutam com clareza e com coragem. No fundo, o ódio à tal inscrição de que falava José Gil, em "Portugal, o medo de existir".
Por ele passaram em revista questões incómodas como a mediocridade generalizada e a falta de qualidade do ensino no IPG, as tentações populistas da "classe" política local, a ineficiência e amadorismo do NAC, o completo desnorte e incompetência da actual direcção camarária em matérias como o investimento público, a captação do investimento privado, de modo a fazer frente aos baixíssimos níveis de ocupação da economia local, a ausência de uma estratégia turística e de imagem para a cidade, a debilidade política do actual presidente, subalternizado às agendas políticas dos seus congéneres de Viseu e da Covilhã, o patético site da CMG, a inacreditável exposição das T shirts de Alves Ambrósio, a fulminante elevação de Luís Filipe Reis a símbolo da cidade, a insólita endogamia ao nível dos funcionários da Câmara, etc.
Pela minha parte, embora pontualmente em desacordo com algumas análises, e admitindo a existência de uma hidden agenda por detrás, insisto que foi com todo o mérito que o blogue se tornou uma referência no débil espaço público da cidade. Cuja efemeridade se lamenta, embora se compreenda.

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Passeando na blogosfera guardense

Fui espiolhar a blogosfera egitaniense. E não é que apanhei algumas surpresas, convenientemente graduadas pelo interesse que suscitaram! Passemos então à degustação, começando pelas entradas: "Sobre(o)viver", de Júlio Seabra. Aí se pode encontrar um texto intitulado "Guarda com horizontes". Um panegírico que fala por si:
Em menos de um ano de mandato de Joaquim Valente, os egitanienses já viram tornadas realidade algumas propostas assumidas sob palavra de honra, que este assumiu no seu manifesto autárquico, aquando da sua eleição a 9 de Outubro de 2005. (...) Joaquim Valente sabe da importância destas premissas, a nível interior e exterior, e tem apostado, com sucesso, na realização de acções culturais, recreativas e desportivas, que dão mais vida à cidade e ao concelho. (...) Veja-se aqui o resto.
Provadas que foram as entradas, alguns apontamentos:
1º O autor devia ser contratado para relações públicas da Câmara, ou, no mínimo, escrever os editoriais do seu Presidente nas habituais folhas de propaganda. De que é que está à espera, sr. Engenheiro?;
2º deve com certeza haver uma relação - tão óbvia que me escapa - entre o Mundialódromo (?), a Volta a Portugal, a animação de Agosto e a descida da taxa de desemprego ( segundo dados do Director do IEFP-Guarda, reproduzidos num jornal local e sem confirmação por outras fontes). Já para não falar na subida dos níveis de auto-estima, medidos à saída dos espectáculos das Festas da cidade por uma equipa de psicólogos amadores orientados pelo Prof. Karamba (o tal que anda aí a distribuir papelinhos nos pára-brisas, garantindo expeditivo remédio para um sem fim de maleitas, desde dor de corno a hemorróidas);
3º A tal animação deve ter sido um êxito, mas então não percebo como é que, num dia à noite que passei pela Praça Velha no momento em que estava ser projectado um filme na Mediateca, o público se resumia ao técnico e a duas funcionárias da Biblioteca;
4º Em qualquer tempo e lugar há sempre quem se dedique às prestimosas apologias da"situação". O wishful thinking é sempre o mesmo: vá lá, todos juntinhos em volta do chefe, ele está cheio de ideias para nós, ele vai salvar-nos, cerrem fileiras com "intervenção verbal e física", ou com "palavras optimistas e com novos horizontes". Sejamos claros: também penso que a Guarda necessita urgentemente de uma estratégia de desenvolvimento ambiciosa, de uma imagem. Não acredito é que estas realidades se atinjam com unanimismos, mas com consensos entre quem pensa de modo diferente. Se assim não fôr, corre-se o risco de as opções políticas a tomar serem permanentemente bloqueadas e que contributos críticos iconoclastas sejam catalogados como discurso pessimista. Se assim não fôr, está aberto o caminho ao carreirismo e ao grau zero da política.
Ainda nas entradas, apareceu um prato chamado "Do alto da serra". Trata-se de um blogue marcadamente pessoal e de inspiração territorial (não confundir com regional). Revelam-se os gostos do autor - gastronomia, viagens, acontecimentos populares, Tony Carreira, Festival Jovem da Canção Religiosa e, acima de tudo, Festas da Cidade. Neste ponto, o "guardador de rebanhos" revela uma irreprimivel satisfação pelo retorno das Festas ("o regresso às origens, ao que era bom") salientando que "o povo anda contente" por aqueles dias. Aproveita então para lançar uma farpa assassina ao TMG, lembrando o "buraco que cavou em ano e meio". Adivinhando-se a juventude do Autor, e até algum esclarecimento, é arrepiante observar a fixação pelo gosto mediano, para não dizer pimba.

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O guarda-nocturno

Da lavra de José Carlos Alexandre, saiu no jornal "O Interior" uma crónica com o subtítulo a urgente educação dos intelectuais subdesenvolvidos. Na sua saga em defesa do gosto do bom povo, o autor fustiga violentamente os tais intelectuais, com epítetos como: "luminárias", "artistas de meia tijela", "snobes insuportáveis". Estes são, segundo ele, os sinistros representantes de uma elite obscura, que pretende educar o povo com "alta cultura" e que justifica o atraso do país com o facto provado (pelo autor) de que o povo não está interessado em "alta cultura" e prefere futebóis, fados e religião (sic). Acrescenta ainda que as elites que temos não prestam, "tomaram decisões desastrosas", desde o liberalismo, supõe-se, e que "nos conduziram ao triste estado em que estamos". Outras elites de países "civilizados" são, segundo o autor, mais tolerantes com os gostos do respectivo "povo". Dá o exemplo da Alemanha, onde, informa, o Volkgeist se resume à "cerveja, ao futebol, ao cabaré e outro qualquer entertenimento pimba" (sic). Termina de modo assertivo, com o discurso habitual de que o que interessa é "dar" a todos o acesso à "alta cultura", sem a intervenção dos tais intelectuais subdesenvolvidos. A quem estará vedada qualquer tutela sobre os gostos das massas, pois "não têm nenhum mandato para o efeito", ainda por cima com o rico dinheirinho dos contribuintes. Alexandre consegue mesmo vislumbrar uma "ambição estalinista" nestes degenerados.

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O circo

Segundo rumores que circulam na egitana, estão em curso grandes cozinhados ao mais alto nível, de modo a colocar na administração da CulturGuarda um prometedor gestor comercial, com vasta experiência na...Loja do Concelho. Ao que parece, o apelido sonante terá contado muito na escolha. Velhos hábitos de sucessão dinástica, de fazer corar um verdadeiro monárquico. Todavia, é lícito concluir que uma mudança de rostos traga consigo uma alteração de prioridades ao nível da politica cultural local. As provas estão à vista: ao mesmo tempo que é abandonada a conclusão da construção da nova biblioteca municipal, é promovido o cantor pimba Luís Filipe Reis como símbolo oficial da cidade. Prepara-se pois o abandono de um projecto que em 20 anos colocou a Guarda no roteiro cultural nacional, como referência e exemplo do aproveitamento das valências locais, combinadas com uma programação ambiciosa e exigente. Que, para além da diversidade das propostas, foi criando e fixando públicos, reconstituiu a memória local e criou uma mais-valia estratégica para a região. Um conjunto de manifestações culturais duradouras e bem planeadas representa, para qualquer cidade que se preze, uma efectiva condição de desenvolvimento a todos os níveis, e favorece a criação de uma certa imagem de marca da localidade. Não acredito que esta viragem de rumo seja unicamente explicada pela insensatez, pelo mau gosto, pela ignorância, ou pela contabilidade do curto prazo. A razão é fundamentalmente política. Ou, se se quiser, eleitoralista. Pão e circenses: a receita que continua a fazer milagres. Mesmo com algum Doutor Fausto pelo caminho a remoer a consciência.
Devo dizer que tive oportunidade de conhecer a Guarda em momentos distintos. Para o que aqui interessa, senti na pele a cidade, quando a opressão moral, social e clerical, herança do salazarismo, era um manto de estupidez castradora, que obrigou os inconformados de duas gerações a buscar outras paragens. Talvez porque, simultaneamente, inspirava o doce sabor da transgressão criadora. Alguns, muito poucos, ficaram, resistiram e conseguiram inverter as regras. Mesmo errando, o medo de não errar nunca suplantou o receio de assumir os próprios erros.
Tudo se prepara pois para que nos próximos tempos os números triunfem em toda a largura de banda. É previsível que quem quiser comprar um livro ou um CD - não disponíveis nas grandes superfícies - terá que se deslocar a Salamanca, a Coimbra, ao Porto ou a Lisboa. Quem quiser assistir durante o ano a algum espectáculo com alguma qualidade, ou fora dos circuitos habituais, passará a ter que fazê-lo obrigatoriamente, se o desinvestimento no TMG se concretizar. Como sempre, vai valer o espírito de procura de quem não se conforma com a hegemonia do maistream. Falo por muitos, acreditem.
A opressão que mencionei teve consequências devastadoras para o desenvolvimento da cidade, mas os efeitos do triunfo do populismo que se avizinha irão ser muito muito piores. A prová-lo, são suficientemente elucidativas as inenarráveis condutas de esgoto plantadas na Praça Velha a fazer de vasos para árvores. O erzatz de um tempo.

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sábado, 3 de março de 2007

A Festa

A colocação desta postagem não é inocente. Revela a excelência de um evento cultural com características marcadamente de Verão, organizado com o propósito de alcançar um público vasto, mas sem quaisquer concessões ao mainstream, conciliando as mais-valias locais com uma programação exigente.
Ora, isto para antecipar que este ano vai haver Festas da Cidade na Guarda. Depois de um jejum de 5 anos, pelas razões conhecidas. Da programação ressalta o óbvio: uma amálgama de pimba e folclore, caucinada por dois espectáculos "âncora": os GNR e Luís Represas. Não é difícil depreender, pela sua coerência, que na programação original não constavam estes nomes, "metidos" posteriormente para compor o ramalhete. Isto após as reacções públicas desancadeadas pelo anúncio da realização das Festas e respectiva justificação, por parte da Câmara Municipal.
Não discordo que haja "Festas na Cidade". Este tipo de acontecimentos faz parte da agenda da maioria das localidades com alguma dimensão deste país. Já se me afigura errado que a oferta que integra a programação não seja pautada pela diferenciação, contrariando a costumeira uniformização. Por outro lado, se as festas são populares, então haveria que nelas mobilizar as colectividades e os cidadãos que espontaneamente se organizassem, à semelhança do que aconteçe noutras cidades. E o local escolhido - Parque Municipal, com alguns espectáculos na Praça Velha - não me parece o mais indicado, sem que se tenha tirado partido da requalificação do centro Histórico, ao abrigo do programa Polis. Quanto à divulgação, revelou-se de um amadorismo desconcertante: o cartaz é graficamente pobre e quase ilegível e não há qualquer informação disponível online, até agora.

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Faz-me festas

No domingo estive no Festival Andanças, em Carvalhais, S. Pedro do Sul. Incluo aqui essa referência não para publicitar o meu roteiro turístico, mas como pretexto para um apontamento comparativo sobre Festas populares, agora que as pindéricas Festas da Cidade da Guarda chegaram ao fim.
Era gente nova, menos nova, gente de cá, gente de toda a parte, para quem a vida é mais do que o tracinho na lápide. Era gente a musicar, a trocar, a inventar, a amar sem limites, a dançar pelo mundo inteiro em seis palcos diferentes. Uma festa. De verão. De sempre. Organização atenta e impecável.
Passemos então às tais Festas da Cidade. Houve uma comissão das ditas: os patuscos moços de recados da Câmara, isto é, aqueles a quem os caciques deram tacho há anos ou aqueles que esperam alcançá-lo. Os outros, os boys veteranos instalados, 'tão caladinhos que nem ratos. Ora, estes maduros, apoiados pela maresia neoliberal que sopra dos lados do IPG e de algumas redacções, resolveram dar então ao povo lo que lhe gusta, isto é, assegurar um segundo mandato ao Valente. Resultado: uma festarola novo-rica, onde só faltou o foguetório. Uma completa descoordenação entre o serviço nas barracas e a organização, tendo muita gente que sair do parque logo depois de lhe ser servido o jantar, nos dias de espectáculo. O palco mal concebido, de tal modo que a plateia reservada aos vips teve que ser enchida à pressão na noite dos GNR, depois de uma observação bem a propósito do Rui Reininho. Não houve rasgo, nem capacidade para atrair outros públicos senão aqueles que iriam a qualquer coisa. Já aqui referi outras razões. E expliquei porque este modelo de festas não serve para nada, a não ser para os parolos ficarem contentinhos consigo, a Guarda ficar fora do mapa e os eternos beija-mão ganharem mais uns cobres, ou notoriedade. Mas caramba, 25.ooo visitantes, anunciados pelos jornais locais espaciais fenomenais transversais comensais... (desculpem esta deriva dadaísta) é obra! Como se chegou a esse valor? Será que puseram gente nos locais a recensear o público? O mistério estatístico permanece.
Mas embalados por estes números fictícios, apareceram uma série de comentadores clamando vitória contra os subdesenvolvidos elitistas. São os mesmos que dizem que o Estado não devia subsidiar a actividade cultural. Que os contribuintes não têm que andar a pagar os caprichos de meia dúzia de iluminados. No entanto, apoiaram entusiasticamente um acontecimento de feição claramente institucional e pago integralmente pela Câmara. Então e o divino mercado, meus senhores? Ai essa coerência, deixa muito a desejar! Esta discussão arrasta-se há muito e raramente tem sido séria. Mas como diz Tiago Mendes em "A Mão Invisível" (um blogue liberal, atente-se), num excelente post sobre a intervenção do Estado na cultura: "a aplicação da lógica de mercado a esferas onde ela deve ser importante mas não EXCLUSIVA é não só errada mas, estrategicamente - ainda que não intencionalmente - faz com que a liberalização da sociedade se atrase." Mais à frente cita Vasco Rato - outro liberal: “Em cultura, não podemos dar apenas o que o povo quer. O gosto da Estética é moldável, evoluível. Nós sabemos que não há mercado para certos fenómenos culturais: bailados, óperas, (...). O estado tem um papel essencial nalgumas áreas, entre as quais a cultural. Não para impor gostos, mas para proporcionar alternativas.” (sublinhados meus). Ficamos entendidos?
Por outro lado, na mesma imprensa anunciam-se algumas correcções para o ano que vem. O palavreado do costume. O objectivo é estampar 30 000 nas primeiras páginas. Os merceeiros adoram. Alguns vereadores também! É que números redondos ficam sempre bem! Não é tão ternurento?

*Um destes dias, tive que mostrar o BI às simpáticas girls que o pedem na recepção da Câmara. Talvez pensem que o instante de um sorriso possa comprar a minha condescendência com a ineficácia e a incompetência que me esperam lá dentro. Lamento, queridas, mas não compra.

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Hic et nunc (não é Latim, estou com soluços, bolas)

A Senhora Professora Luísa Queirós de Campos, doutorada em Literatura Inglesa e Professora Coordenadora de Literatura Inglesa no Instituto Politécnico da Guarda, acaba de escrever neste jornal (Vd. edição da semana passada) um texto intitulado Usque Quantum, Americe, patientia nostra abutris?
Ora, a Senhora Professora começa por fazer uma minuciosa análise semântica de declarações públicas prestadas pelo director artístico do T.M.G. Demonstra assim uma invulgar sintonia com a recente técnica da vivissecção vocabular, aplicada à crítica literária e popularizada por João Pedro George, no seu livro Não é Fácil Dizer Bem. Que a cultura não precisa da autorização nem do aval dos poderes, estamos todos de acordo. O único senão é que esquece o contexto em que aquele enunciado se produziu. Esquecer o referente não parece ser muito ortodoxo, Senhora Professora!
Mas a Doutora, para além do inusitado e burocrático zelo dispendido com as habilitações escolares do Director Artístico do TMG, nada traz de novo quanto a uma crítica consistente e sustentada sobre as opções de programação do TMG. É que, em 272 actividades desenvolvidas até agora (não contabilizando as que dizem respeito ao Serviço Educativo), a Senhora Professora elegeu, como referência…duas! Será porque só presenciou essas? Porque não quer falar das outras a que assistiu? Porque já viu o mesmo em Itália, Londres ou Nova Iorque? A dúvida subsiste. Mas é muito pouco, e demasiado leviano para ser credível, afirmar que a programação é pouco “popular”, sem apresentar dados, grandezas, informação objectiva, matéria-prima que legitime qualquer tratamento crítico que depois faça.
Por outro lado, enunciar de forma avulsa uma série de nomes de referência da música e do teatro é colocar o problema de forma caricatural, não lhe parece, Senhora Professora? Julga que encenações desses autores e repertório desses compositores andam por aí, a pairar, à espera que um programador detecte o sinal e as traga ao palco? Anda iludida, Senhora Professora! Programar, segundo creio, é antes de mais, saber não ser neutro com o que se escolhe. Mesmo no âmbito daquilo a que se designa serviço público. Diria até que se pode sempre escolher, de entre o que há em determinado momento, de acordo com a natureza da programação que se elegeu (e do orçamento, é claro). Pode-se mesmo, o que é desejável, mobilizar agentes locais e acolher produções originais, a solo ou em regime de parceria (já participei em duas, por sinal). Em contrapartida, quase nunca essas opções se fazem por obras ou autores pré determinados. Pelo menos, neste tipo de instituições.
A Guarda tem ainda alguns trunfos estratégicos que seria insano largar mão, Senhora Professora. Um deles é precisamente o facto de, há duas décadas para cá, ter sabido ganhar e consolidar uma posição de relevo no roteiro cultural nacional, conquistando públicos e o reconhecimento da crítica especializada. Não quer que voltemos atrás, pois não?
Concordo obviamente consigo quando adverte dobre a pluralidade do público. Até iria mais longe: em rigor, o público não existe, mas indivíduos cuja motivação para com as manifestações culturais que frequentam é vivida de modos infinitamente diferentes. Mas se falarmos na relação constante que mantêm com essas manifestações, desde logo se cria uma clivagem fundamental: para alguns, como já escrevi, a cultura é normalmente invocada como um lugar onde se nivelam e apagam as tensões e os desequilíbrios éticos e sociais. Para esses, tudo se esgota na simples presença em dado evento. Para outros, porém, as culturas são expressões de permanente tensão entre as várias representações que vários grupos fazem de si e do outro. A sua expressão pública não é, nem pode ser, pacífica nem ingénua, sendo certo que a imprevisibilidade do resultado será um modo possível da sua manifestação. Para esses, em suma, as opções de vida que tomam raramente são desligadas das opções artísticas que perfilham, sobretudo as que dizem respeito à modernidade.
O T.M.G pode e deve existir para uns e para outros.
A Senhora Professora afirma, por outras palavras, que a programação do Teatro Municipal da Guarda tem sido um regabofe elitista e experimentalista. Onde pretende chegar? Não é que eu acredite, mas será que pretende recolocar o debate em paragens onde ele já esteve – o populismo – só que agora revisto e aumentado com uma retórica esquerdista e atávica?

Publicado no jornal "O Interior"

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