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Incursões - 2

Ontem à tarde fui a um desses extraordinários encontros com a paisagem de Outono, que um encadear feliz de circunstâncias torna único: um dia luminoso, sem a agitação do Verão, em que o labor incansável da Natureza se torna mais nítido e, finalmente, aquela disponibilidade interior para a fantasia e a redenção.
Desci até à barragem do Caldeirão, continuei até Videmonte e aí apanhei a estrada para Linhares. Em plena serra, virei por um caminho florestal cujo terminus é a Penha de Prados, a 1250 metros. Trata-se de uma formação rochosa granítica disposta como uma fortificação natural, uma escarpa de onde se disfruta uma vista estonteante. À direita a Guarda voltada a poente, e o início do vale de Famalicão. Depois, com dimensões ciclópicas, o Vale do Mondego, cavado a seguir aos Trinta, distinguindo-se a Faia e Cavadoude e, no cimo, o Tintinolho. Lá ao fundo o cume da Marofa e, mais longe ainda, a serra da Peña de Francia, já em Espanha. A norte espreita a linha ténue do Penedo Durão, em terras durienses. O anfiteatro do planalto beirão estende-se a perder de vista, no sopé da serra: as terras de Trancoso e de Pinhel, a Velosa, Vila Franca das Naves, a Lageosa, uma infindade de aldeias distribuídas até Celorico, que consegue distinguir-se no ponto mais à esquerda, com Fornos de Algodres a espreitar. Cá em cima, chegava o som dos badalos dos rebanhos, as vozes dos que trabalham lá em baixo nas tapadas, o silvo peculiar das pás a girar nas torres de captação de energia eólica...
A seguir desci até Prados e continuei por um troço não asfaltado - rodeado de castanheiros pejados de ouriços, nogueiras e lameiros - que vai desembocar na Rapa. Transposta a serra, eis-me com o Vale do Mondego aos pés, até Aldeia Viçosa. Um quilómetro depois, a cereja no cimo do bolo: paragem na Quinta da Ponte - um solar barroco onde agora se faz turismo de habitação, mas que foi bastante maltratado pelas tropas de Junot durante as Invasões Francesas - precisamente nas margens do Mondego. No local, passada a ponte medieval que dá o nome ao local, do lado direito, para o lado da Faia, fiz um pequeno percurso a pé até chegar ao melhor local para se disfrutar o rio, a mon avis. Trata-se de uma série de lajes dispostas sobre a água, que ali é represada graças a um pequeno dique a jusante, adquirindo assim profundidade suficiente para uns bons mergulhos e umas boas braçadas. Parte do percurso é feito por uma via em pedra que julgo ser um antigo caminho dos almocreves. Que desemboca numa magnífica cosntrução em pedra que já foi azenha. O cheiro da humidade, destilada pela terra e pelo coberto vegetal, é omnipresente nesta altura. Ali fiquei por um bocado, sentado numa laje, a ouvir a água correr, o vento a atravessar a copa das árvores, observando o rasto dos aviões cruzando-se no céu. Não é preciso mais para um pôr-do-sol de luxo, garanto-vos.
No caminho de volta, meti pelo verdejante vale acima, até à ponte romana da Mizarela. Mas antes, à beira do caminho, dei conta de uma macieira Bravo de Esmolfe, a rainha das maças. Bingo! A travagem foi de tal ordem que até uns cães que iam a passar se assustaram. Acontece que grande parte dos frutos estava tombado. Peguei num saco de plástico e, respigador improvisado, meti mãos à obra. Passados cinco minutos já estava o saco cheio. O perfume inebriante dos frutos não demorou a invadir o carro, que uma paragem na nascente do Caldeirão para encher o cantil só veio intensificar. E que tão cedo não se vai dissipar.
O perfume foi como um recado, uma marca indelével, um sinal de doçura que lentamente abriu um feixe de luz nos corredores sombrios das ruínas e da devastação. Pouca coisa, poderão dizer. Talvez não, talvez não...
PS: devido a um anormal esquecimento, não levei a câmara fotográfica. Por isso, snif, não há imagens a acompanhar este mini-périplo. Mas há males que vêm por bem: obrigou-me a trabalhar a linguagem de outra forma.

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