Êxodus
Fui ver a última produção teatral do Aquilo. A peça chama-se "Êxodo Rural: Rural Industrial", com encenação de Bernhard Bub. Um espectáculo visualmente poderoso, graças a uma complexa estrutura cenográfica, em metal, onde foram acoplados vários maquinismos, instrumentos de percussão e adereços mecânicos. Decerto se pretendeu reproduzir um estaleiro de obra pós-industrial, onde as funcionalidades cénicas se multiplicassem. De realçar igualmente a banda sonora, que conseguiu evocar as ambiências pretendidas.
No entanto, notam-se aspectos menos conseguidos. Desde logo, ao nível da direcção de actores, sendo notório que estes, em alguns momentos, deambulassem de forma errática pelo espaço, numa completa descoordenação de movimentos. Dando a entender que não havia marcações específicas para esses períodos.
Por outro lado, o espectáculo enferma de um problema estrutural que já havia detectado nas últimas produções dos Fura del Baus: uma sucessão de efeitos - espectaculares, é certo - mas sem qualquer fio narrativo que os enquadre, como se o artifício valesse por si próprio. Ora, no teatro, o artifício só é entendível se ao serviço da naturalidade. De outra forma, o actor desaparece, substituído por uma série de automatismos de ordem técnica.
Mas há ainda um equívoco fundamental na arquitectura desta peça: uma ingenuidade tributária de Rousseau, que inquina definitivamente qualquer suposto propósito pedagógico associado. No texto que acompanha o espectáculo pode ler-se: Nós próprios, perante a onda industrial do progresso, temos a sensação que este desenvolvimento nos divide em duas partes e que nos poderá custar as nossas origens, a nossa cultura e até a nossa própria existência. (...) Por entre o barulho da "máquina" os humanos ainda procuram a sua sorte. Como se poderá depreender, este discurso sinaliza um retorno de 200 anos, transportando-nos aos luddites - um movimento nascido da Inglaterra, no início do séc. XIX, contra a mecanização da indústria têxtil e que promovia a destruição pura e simples das máquinas - e ao inefável bom selvagem. Ignora-se completamente a modernidade - com a sua apologia da máquina, a descentralização do objecto artístico, o nihilismo como condição moderna por excelência - propondo-se um retorno a uma naturalidade que a própria peça desmente, enquanto proposta artística.
Dois pormenores ainda.
Em primeiro lugar: a colocação da palavra Pátria, em letras gigantes, no topo da estrutura, como instância repressiva, é de um mau gosto inqualificável. Faria sentido há 30 anos atrás, no contexto da época. Hoje é um simples erro grosseiro de casting. Não é a "Pátria" que oprime, mas a avidez, a impunidade, a mediocridade sufragada, a desresponsabilização generalizada, os micro-medos que tomaram conta de nós, que infantilizam e armadilham o desempenho da cidadania.
Em segundo lugar, e como não podia deixar de ser, o "politicamente correcto" faz a sua aparição triunfal, neste excerto do texto atrás mencionado: Até que um muro de arame farpado cercou a Europa, fingindo a salvação do status quo e impedindo a entrada de outros povos, outras culturas mais pobres. Repare-se que não está só em causa a entrada de "outros povos" , mas também de "culturas mais pobres", assumindo-se um irresponsável e piedoso - embora camuflado - eurocentrismo assistencial, produto da mesma má-consciência que leva a relativizar o terrorismo, por exemplo, ou a desculpabilizar a hostilidade dos tais povos que não admitem a "diferença" da Europa.
O Curioso, curioso é não falar da última produção do Aquilo...
José Vaz
Publicado por Anónimo | 30 de março de 2007 às 17:26
Qual produção? O Aquilo produziu mais alguma coisa? Deve estar a referir-se ao desfile do entrudo. Acontece que isso não foi produzido pelo aquilo, mas pelo "Todos à roda" e NAC. O aquilo participou, tal como outras colectividades. De resto, nem sequer vi o tal desfile. O que invalida que fale dele. Mas será assim tão importante?
Publicado por António Godinho Gil | 30 de março de 2007 às 19:28