Tábua de marés (16)
Coordenação geral e dramaturgia: Américo Rodrigues
Encenação e dramaturgia: José Rui Martins
Direcção musical: César Prata
Cenografia e adereços: Marta Fernandes da Silva e Pedro Santos
Co-produção do Teatro Municipal da Guarda e Trigo Limpo Teatro ACERT
Dias 21, 22 e 23, no Grande Auditório do TMG.
O nome pode induzir em erro. Não se trata de um espectáculo de teatro radiofónico, como seria de supor. E porquê? Desde logo, porque a rádio é claramente o motivo, o suporte dramatúrgico da peça. O seu papel é muito mais significativo do que o do coro grego, por exemplo. Uma vez que, nesse caso, ele é ora o impulsionador, ora o comentador distanciado da acção dramática. Pois aqui a acção passa-se no interior da própria rádio. Que transmite aquilo que é recriado cenicamente. Portanto, a rádio é, nesta peça, o narrador que comanda a acção e a reproduz. Servindo o palco como uma extensão, uma projecção daquilo que se passa no estúdio. Em suma, convidando-nos a olhar para ela como se se tratasse daqueles personagens que Rembrandt incluía em alguns dos seus quadros, olhando para o espectador e tornando-se cúmplice do que ele próprio assiste. Portanto, a rádio funciona aqui de duas formas: como meio de projecção e circulação da mensagem proposta e como instrumento agregador e simplificador no processo dramatúrgico desenvolvido. No segundo caso, resolveu um problema sentido no anterior espectáculo, “Guarda, paixão e utopia”, quanto às transições entre as diversas cenas. O tal fio condutor. No primeiro, abriu possibilidades infinitas no que toca à escolha dos temas. Por outro lado, a dimensão impressionante da ficha técnica pode induzir noutro erro: encarar este espectáculo enquanto produção megalómana. O que aconteceria se o passo pretendido fosse superior às pernas. Ou se o TMG se tivesse transformado num estúdio da Paramount Pictures durante a rodagem de um épico de Cecil B. de Mille. Ironia à parte, o que impediu a passagem da ténue linha para um gigantismo descontrolado não foi a contenção nem a limitação dos meios envolvidos. Mas sobretudo a fidelidade ao conceito original: contar histórias da Guarda, por gente de Guarda e para a Guarda. Celebrar a casa comum. Orquestrar um conjunto polifónico de vozes, ao serviço de um projecto artístico de qualidade e com projecção universal. Instrumentar a memória, sem deixar de questionar o presente. E tudo isto através do teatro e da linguagem teatral. No fundo, o mesmo desenho criado para o espectáculo de há dois anos, já referido, e para o qual vale muito do que aqui se diz. E em relação ao qual posso, no entanto, estabelecer algumas diferenças: o agora apresentado foi menos poético e simbólico; por outro lado, foi notório o acento dado à direcção de cena, em lugar da encenação propriamente dita. No primeiro caso, pese embora o impacto poético da cena 6 (“Pedras Escritas”) e da cena 9, com o diálogo entre Alberto Diniz da Fonseca e D. Quixote, a poesia foi a grande ausente. No segundo caso, privilegiando-se a sucessão de efeitos visuais e os movimentos colectivos, em lugar da representação propriamente dita. O que, se inculcou ritmo televisivo ao espectáculo, fê-lo perder tensão dramática. Compreende-se que o tempo e o espaço eram escassos para “encaixar” tantos recursos humanos. Mas não deixa de ser verdade que a História tem actores. E o teatro não pode prescindir deles. Devo dizer ainda que me desagradou o maniqueísmo redutor de algumas sequências, nomeadamente das cenas 7 e 8, a propósito da fábrica Renault e do 25 de Abril. A roçar o comício puro e simples. O que evidencia uma opção ideológica que, tal como outra qualquer aplicada directamente à arte, faz dela desaparecer o essencial: a pluralidade de sentidos. E tudo reduz a uma mescla de propaganda com correcção política. Em quase tudo o resto, as soluções encontradas revelaram-se perfeitamente ajustadas e equilibradas. Com alguns rasgos verdadeiramente brilhantes. Quanto aos temas elegidos para formar esta epopeia, tal como das obras que hipoteticamente fossem escolhidas e reunidas numa antologia, pouco haverá a dizer. Procurou-se e conseguiu-se que esses temas não repetissem os “clássicos” utilizados na peça anterior. Decerto outros poderiam ter sido considerados, mas essa avaliação pouco interessa agora. Em suma, um grande espectáculo que dignifica a Guarda, a sua memória, a sua criatividade e a sua dinâmica cultural.