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Há coisas que não mudam

Aos poucos, tenho vindo a acolher um conjunto de ideias e de posições normalmente conotadas à direita. Porque são aquelas que melhor servem aquilo por que luto e de que não abdico. Ajudado, em grande medida, pelo repúdio que dedico ao relativismo ético e à dualidade de critérios adoptados pela esquerda histriónica e ideologicamente enquistada. Por outro lado, se acolho determinada argumentação, não deixo de acentuar o que me separa da direita sociológica, a dos interesses. E mais ainda daquela que só conserva o culto do autoritarismo, o medo atávico da actividade cultural, do conhecimento, da autonomia individual. Porque a arte é o terreno da experimentação, o verdadeiro laboratório da existência. Em suma, aquela que de liberal, no sentido político, tem muito pouco. Aquela que, sem o dizer expressamente, teme o exercício da verdadeira liberdade, fora do paternalismo e da sujeição. Esta última ainda predomina no chamado país real. Na Guarda, por exemplo, triunfa em toda a linha. O discurso das forças partidárias alinhadas à direita prima pela ausência de modernidade, de tensão ideológica, de audácia. Quem ouve as declarações dos seus dirigentes julgará que estamos ainda no PREC. Com a diferença de que os inimigos declarados são agora quem realmente quer essa modernidade, a diversidade, a mestiçagem, a transparência, uma cidadania esclarecida e criativa. Em resumo, o maior inimigo da direita - e não só - na Guarda é, no fundo, a cultura e o que ela representa e promove. Mesmo assim, se o terreno da disputa fosse o ideológico, a política pura, o debate até poderia sair enriquecido. Mas não. Tudo não passa de uns remoques cíclicos contra o desenvolvimento sustentado da cidade, também por via da uma actividade cultural séria e estruturada. Tendo como pano de fundo uma espécie de populismo de vão de escada, que inclui acólitos filo-bímbicos na blogosfera. Vejam-se os argumentos propalados por Ana Manso, a propósito da recente incorporação dos activos patrimoniais geridos pela Culturguarda na sua titularidade. Nada de mais natural. Mas para muita gente há aqui algo de maquiavélico. Como se na Guarda não houvesse questões mais importantes para debater. Todavia, há muito que não ouvia algo tão patético. A afirmação de que só os eleitos podem dispor do património municipal é das coisas mais espantosas que tenho ouvido. Alguém deveria ensinar a esta senhora uns rudimentos de Direito Administrativo e societário. O cosmopolitismo e a requalificação da Guarda, a afronta de haver muita gente que pensa pela sua própria cabeça, são pois os inimigos desta gente. Para eles, a cultura resume-se ao foguetório, ao paternalismo e à fogueira das vaidades. E nada mais.
Voltando ao tema inicial, gostaria de ilustrar o meu posicionamento através de um exemplo que fala por si. Conta-se em poucas palavras. Recentemente, em conversa com um arquitecto da capital, este deu-me a entender que equipamentos como o TMG "na Guarda e noutras cidades pouco populosas" era um "desperdício". E que se podiam "produzir coisas" no domínio da cultura sem equipamentos demasiado exigentes. E sabem qual a filiação partidária deste "entendido"? Vá lá, sentem-se primeiro. Pois bem, o Bloco de Esquerda. Neste dia, percebi que há, pelo menos, dois blocos de esquerda. O deste senhor e do Noutel e o do Miguel Portas. No primeiro caso, confina directamente com o PSD local. Para o caso, interessa que o referido arquitecto - para além de uma notável ignorância acerca do que significa o investimento nas infra-estruturas culturais, na especificidade do seu financiamento e na actividade em si - revela que, por detrás do seu esquerdismo freneticamente chic, existem uma série de preconceitos classistas, centralistas e ideológicos mal resolvidos. Que não conseguem esconder um incomensurável défice cultural, humanista, uma incapacidade em ser genuinamente compassivo com o seu semelhante, um patético progressismo esforçado e supostamente infoesclarecido, uma condição de crybaby dos subúrbios, que nunca conheceu as verdadeiras dificuldades da existência, um tecnocrata disfarçado de turista acidental, um queque deliciado com a condição de burguês, mas com um crachá na lapela que iluda a má consciência, a idiotia ciclotímica, o tique taque da vidinha, sim, a vidinha, a tal que Rimbaud renegou, não quando renegou a sua poesia, mas quando a exumou, na condição de traficante de armas, Rimbaud, connaissez vous, architect?
Resumindo: temos fechada a quadratura do círculo. Uma coisa é a honestidade intelectual. Sem que me julgue dela apóstolo, pelo menos não a disfarço por trás de uma coerência com sabor a teimosia. As boas ideias, as justas, não têm dono nem domínio exclusivo. Uma coisa é a direita ideológica, porventura estimulante. Outra, bem diferente, é a direita sociológica. E esta pode encontrar-se em qualquer parte. Mesmo na direita. E onde quer que a encontre, terei sempre um motivo para me rir dela.

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