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Omo lava mais branco

Abílio Curto, o conhecido ex-presidente da Câmara da Guarda, é agora comentador no programa radiofónico "Politicamente Incorrecto", no ar desde Novembro na Rádio Altitude. Sobre o assunto já aqui fiz uma referência abertamente crítica. Recentemente, numa das suas crónicas, lançou um esconjuro contra os bloguistas que se pronunciaram negativamente acerca do seu reaparecimento público. Como nos velhos tempos, este senhor gesticula freneticamente, faz uso de uma verbosidade de feira, continua a ser o que a demissão cívica de uma cidade o deixou ser durante demasiado tempo. Ou seja, convive mal com a crítica, com a pluralidade, com uma opinião pública esclarecida e independente, com tudo aquilo que extravase a rede clientelar do amiguismo e da vacuidade ideológica e política. O que inclui a modernidade, a transparência, uma actividade cultural regular e seus agentes, e um jornalismo independente. Para "notoriedades" de província do género, o paternalismo e o apagamento da cidadania no seu entorno são o garante da sobrevivência e protagonismo na res publica. E tornam-se elementos de um estilo que, ficámos a saber, Curto nunca irá perder. Nessa crónica, chega a ameaçar os críticos, os bloggers que publicamente denunciaram a irresponsabilidade desta rentré. O que, só por si, diz tudo. Agora cabe perguntar: perdeu Curto o direito à intervenção cívica, à opinião? Evidentemente que não. Aliás, se fosse isso que estivesse em causa, podem os leitores ter a certeza que seria eu dos primeiros a avançar em sua defesa. Como faria em relação a qualquer outro cidadão. Discordasse ou não das duas opiniões. Ou ele das minhas. A questão está na oportunidade de um comentário sobre a vida política local por alguém que perdeu a legitimidade ética para o fazer. O que significa que, do ponto de vista jornalístico, abrir-lhe esse espaço representa não só uma cedência ao sensacionalismo, como não produz qualquer tipo de contraditório produtivo, nem acrescenta nada à actual dinâmica da cidade. Curto dá palpites, exorcisa fantasmas antigos, reparte elogios, excomunga, cozinha ambições e lugares, distribui presentes, alguns deles envenenados. Sobre política a sério, nada. Sobre ideias para a cidade, idem. Sobre ideologia, é melhor nem falar. A única vantagem deste discurso é lembrar à audiência como ainda decorre, em grande parte, a luta política neste canto do país. Por outro lado, Curto dá-se ares de político jubilado, a quem tudo é permitido, pois está em tudo e já não está em nada. O que só em parte é verdade, pois parte da rede clientelar que criou acabou por lhe sobreviver. Ora, no seu anátema contra os bloguistas, com recadinhos pelo meio, Curto vem lembrar como o bom povo ainda o idolatra, ou pelo menos, está certo da sua eterna gratidão. Neste momento veio-me à memória a sua imagem de marca: o "presidente das aldeias". O que inculca outra característica no seu perfil, comum a todos os caciques: o populismo. Ou seja, o homem que faz, o que no meio de cegos, o senhor entre os vassalos, o que foge do escrutínio de uma autêntica opinião pública como o diabo da cruz. Pois Curto vem agora lembrar precisamente o "bem" que fez a tanta gente. E descobre nisso a razão para a inveja dos que o atacam. Estou a falar a sério, acreditem. Ora, será que Curto "deu" algo a alguém? Os melhoramentos e benefícios onde interveio foram actos próprios de um benemérito? Obviamente que não. Um político que exerça cargos públicos é eleito precisamente para cumprir o programa para que foi sufragado, tomar decisões sobre o bem comum na circunscrição respectiva. Utilizando recursos públicos, é claro. É fundamentalmente isso que se espera dele. O grau de satisfação dos eleitores é medido fundamentalmente através de instrumentos que tornem possível um escrutínio permanente, de que o voto é o resultado típico. É essa a sua "gratidão", ou o seu contrário. Seja como fôr, esse sentimento deveria ser reservado para um empresário, ou um filantropo. Casos em que, por razões distintas, "dão" algo de si em benefício dos outros. Em relação aos políticos, vale a saudável regra da contratualização: a avaliação do mandato de quem é eleito determina a sua continuidade no cargo. E nada mais. Naturalmente, as qualidades humanas de um político, a notoriedade do seu desempenho, terão sempre um lugar na História e no coração daqueles que apreciarem o estilo. Todavia, tudo o que extravasar esta representação colectiva, sobretudo a reivindicação do amor da populaça pelo interessado (Vd. "O Perfume", de Patrick Süskind), o apelo a uma vaga de fundo que tudo possa justificar, a exigência de um dasagravo permanente que garanta a impunidade, não deixando de ser um assunto sério, mesmo que no domínio do small talk, remete menos para a vida pública do que para a virulência de uma ferida narcísica ainda por sarar.

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