O nome pode induzir em erro. Não se trata de um espectáculo de teatro radiofónico, como seria de supor. E porquê? Desde logo, porque a rádio é claramente o motivo, o suporte dramatúrgico da peça. O seu papel é muito mais significativo do que o do coro grego, por exemplo. Uma vez que, nesse caso, ele é ora o impulsionador, ora o comentador distanciado da acção dramática. Pois aqui a acção passa-se no interior da própria rádio. Que transmite aquilo que é recriado cenicamente. Portanto, a rádio é, nesta peça, o narrador que comanda a acção e a reproduz. Servindo o palco como uma extensão, uma projecção daquilo que se passa no estúdio. Em suma, convidando-nos a olhar para ela como se se tratasse daqueles personagens que Rembrandt incluía em alguns dos seus quadros, olhando para o espectador e tornando-se cúmplice do que ele próprio assiste. Portanto, a rádio funciona aqui de duas formas: como meio de projecção e circulação da mensagem proposta e como instrumento agregador e simplificador no processo dramatúrgico desenvolvido. No segundo caso, resolveu um problema sentido no anterior espectáculo, “Guarda, paixão e utopia”, quanto às transições entre as diversas cenas. O tal fio condutor. No primeiro, abriu possibilidades infinitas no que toca à escolha dos temas. Por outro lado, a dimensão impressionante da ficha técnica pode induzir noutro erro: encarar este espectáculo enquanto produção megalómana. O que aconteceria se o passo pretendido fosse superior às pernas. Ou se o TMG se tivesse transformado num estúdio da Paramount Pictures durante a rodagem de um épico de Cecil B. de Mille. Ironia à parte, o que impediu a passagem da ténue linha para um gigantismo descontrolado não foi a contenção nem a limitação dos meios envolvidos. Mas sobretudo a fidelidade ao conceito original: contar histórias da Guarda, por gente de Guarda e para a Guarda. Celebrar a casa comum. Orquestrar um conjunto polifónico de vozes, ao serviço de um projecto artístico de qualidade e com projecção universal. Instrumentar a memória, sem deixar de questionar o presente. E tudo isto através do teatro e da linguagem teatral. No fundo, o mesmo desenho criado para o espectáculo de há dois anos, já referido, e para o qual vale muito do que aqui se diz. E em relação ao qual posso, no entanto, estabelecer algumas diferenças: o agora apresentado foi menos poético e simbólico; por outro lado, foi notório o acento dado à direcção de cena, em lugar da encenação propriamente dita. No primeiro caso, pese embora o impacto poético da cena 6 (“Pedras Escritas”) e da cena 9, com o diálogo entre Alberto Diniz da Fonseca e D. Quixote, a poesia foi a grande ausente. No segundo caso, privilegiando-se a sucessão de efeitos visuais e os movimentos colectivos, em lugar da representação propriamente dita. O que, se inculcou ritmo televisivo ao espectáculo, fê-lo perder tensão dramática. Compreende-se que o tempo e o espaço eram escassos para “encaixar” tantos recursos humanos. Mas não deixa de ser verdade que a História tem actores. E o teatro não pode prescindir deles. Devo dizer ainda que me desagradou o maniqueísmo redutor de algumas sequências, nomeadamente das cenas 7 e 8, a propósito da fábrica Renault e do 25 de Abril. A roçar o comício puro e simples. O que evidencia uma opção ideológica que, tal como outra qualquer aplicada directamente à arte, faz dela desaparecer o essencial: a pluralidade de sentidos. E tudo reduz a uma mescla de propaganda com correcção política. Em quase tudo o resto, as soluções encontradas revelaram-se perfeitamente ajustadas e equilibradas. Com alguns rasgos verdadeiramente brilhantes. Quanto aos temas elegidos para formar esta epopeia, tal como das obras que hipoteticamente fossem escolhidas e reunidas numa antologia, pouco haverá a dizer. Procurou-se e conseguiu-se que esses temas não repetissem os “clássicos” utilizados na peça anterior. Decerto outros poderiam ter sido considerados, mas essa avaliação pouco interessa agora. Em suma, um grande espectáculo que dignifica a Guarda, a sua memória, a sua criatividade e a sua dinâmica cultural.

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E no segundo dia da Criação, fui ao Vivaci. Para quem não sabe, o recém-inaugurado mega espaço comercial da Guarda. Antes de qualquer apreciação, é bom começar pelo seguinte: sempre encarei positivamente a existência de um espaço deste tipo na cidade. Por diversas razões: criação de uma nova centralidade, de que o tecido económico pode beneficiar; um novo pólo de atracção para a urbe; um gerador de auto-estima para os guardenses; finalmente, a existência de um espaço polivalente, confortável, prático, seguro, o que pode fazer a diferença numa cidade com um clima tão agreste. Todavia, sempre discordei da sua localização. Uma vez que fica "entalado" numa zona pré edificada, não respira nem deixa que a zona adjacente o faça. Já me disseram que, ao ser construído junto da zona histórica, vai ter um efeito dinamizador, ainda que indirecto, nessa área vital da cidade. Reproduzindo um pouco o que se passou no Chiado. Mas o argumento não convence. Tanto mais que esse efeito só se notará, provavelmente, numa maior afluência aos estabelecimentos de diversão nocturna. A profusão de comércio e restauração de qualidade, que deveriam ser as âncoras da zona histórica, obedece a uma lógica distinta. Neste caso, só aproveitariam um período mais alargado de funcionamento. Ora, voltando às impressões recolhidas na "nova catedral", como diz o Américo Rodrigues: agradou-me o desenho das escadas rolantes, como linhas que se entrecruzam, vistas do andar de cima e reflectidas na cúpula envidraçada; a livraria Bertrand parece ter cumprido os objectivos; os espaços âncora tradicionais estão à altura; não entrei em nenhuma sala de cinema; o parking funciona razoavelmente; o hipermercado, com um traçado incomum, i.é., mais profundo do que largo, surpreendeu-me pela enorme variedade de produtos. Por sua vez, desagradou-me a tacanhez da área da restauração: sem zonas diferenciadas, sem uns ornamentos "verdes", sem aberturas para o exterior. É certo que muitos estabelecimentos ainda não abriram, mas já deu para perceber as enormes limitações do perímetro. Outro aspecto: na saída de cima e até à Porta da Estrela, o caos é permanente e generalizado. Sem um corredor para os peões, com o espaço praticamente ocupado por carros e uma circulação ininterrupta, é penoso atravessar uns simples 200 metros. Para terminar, é desolador assistir à enorme quantidade de espaços comerciais que ainda não abriram as portas. O que acentua a sensação que toma conta do visitante: estar num bunker. Mesmo sabendo que esse receio advem de o centro estar a meio gás, temo que vá para além disso e subsista como uma marca negativa do edifício.