"Um bando de passarinhos” (2008)Argumento, realização, produção e montagem: ZigudAnte-estreia, com duração de 20’Pequeno Auditório do TMG, 24 de MarçoComo já li algures, a propósito deste registo, estamos na presença de uma curta-metragem poética. A designação é absolutamente acertada, uma vez que a poesia é a matriz deste filme. Por detrás de cada frame, em cada plano, em cada sequência, existe um propósito poético. Para o qual, os textos de Américo Rodrigues, aqui ditos pelo próprio, dão o mote. A história que deu origem ao filme é conhecida: um pastor da Quinta da Taberna, em pleno Parque Natural da Serra da Estrela, concelho da Guarda, registou, ao longo do tempo, uma série de inscrições nas paredes da sua casa. Fazendo-o de forma aleatória, embora com um propósito cronológico, diarístico. Onde cabem acontecimentos, impressões, listas de tarefas ou simples estados de espírito. Sinais “riscados” na parede e únicos testemunhos de um tempo. Ora, esse memorando grafitado foi recolhido e recriado por Américo Rodrigues. Dando origem a um caderno da colecção “O Fio da Memória” (edição NAC, 2004), em co-autoria com Ana Leonor Silva, intitulado “As pedras escritas – O pastor escrevinhador da quinta da taberna”. Creio ser neste registo que os textos que integram o filme têm a sua origem.
A obra tem assim uma marca espácio-temporal precisa. Todavia, desenganem-se os curiosos que esperariam ver nesta curta-metragem uma simples digressão documental. Ou uma surtida voyerista, do tipo televisivo, como já se viu em aclamados equívocos do tipo bucólico-pastoril. Como já se disse, este filme encerra uma evocação poética. Uma evocação onde o enredo está ausente, embora já não a narrativa. E que tipo de narrativa? A do tempo, seria a resposta mais óbvia. Um tempo encravado num espaço físico, cujos sentidos se convulsionam e se perdem em nostalgia. Onde cabem as memórias cruzadas dos intervenientes, a sua desenvoltura na paisagem, da qual são únicos actores possíveis. Uma paisagem aqui tornada cenário. Sem manipulações forçadas, mas como espaço intemporal cuja respiração se ausculta. E cuja força, neste caso, não chega nunca a esmagar, mas antes a encher de presságios, de refracções. Uma paisagem cuja quietude não inspira estados de alma, nem digressões românticas. Ou muito menos ilustra as inscrições do pastor, ou os poemas “sonoros” de A.R., mas instala-os, simplesmente. Por sua vez, as figuras tão depressa surgem, animadas pelas memórias que relatam, como se dissolvem no som de uma flauta, numa ramagem mais espessa, ou na curva do caminho, como numa sequência espantosa na parte final. Parecendo que carregam consigo uma missão prometaica, cujas elipses a câmara se encarrega de acentuar e iluminar, mas nunca forçando uma proximidade indesejada. As aparições do pastor-escrevinhador, na primeira pessoa, são igualmente comedidas quanto baste. O desenho do personagem é feito sobretudo pelas memórias dos outros, pelos seus relatos dispersos. No entanto, percebe-se que o pastor é a figura central da obra. Todavia, aparece, digamos, nas vestes de um demiurgo, de uma imagem fotográfica soprada pelo vento, logo no início. Mas nunca o vemos, volto a frisar, como um objecto de curiosidade etnológica. E é precisamente esta elegância, o jogo permanente entre a ocultação e a luminosidade, o rigor da montagem, aquilo que torna este filme uma obra singular e enternecedora. A qual, tanto quanto sei, é a obra de estreia do autor. Duas notas finais. Gostaria de, para além dos textos, de que já falei, fazer uma menção para as eficazes paisagens sonoras criadas por César Prata. Por último, a inclusão de separadores de texto no meio do filme, se bem que graficamente interessantes, torna-os elementos perturbadores que podem induzir o espectador em erro.
Publicado no jornal "O Interior", em 2 de Abril
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