José Matias revisitado
Nem sei como isto aconteceu, senhor doutor... Eu amava-a está a ver? Sim, estava a ver perfeitamente. Ele estava ali, sentado à minha frente, titubeando frases desgarradas, com castelhanismos à mistura. Vinte e poucos anos. Não usava truques, uma indignação forçada, nem sentimentos postiços ao serviço da negação, como me habituei a ver nesta profissão. "Conte lá, homem"... Estava para casar com ela. Já estava tudo arranjado. Ainda fiz mais uma temporada em Espanha, para juntar alguma coisa. Quando cheguei, ela já não me queria ver. Tinha arranjado outro. Quis falar-lhe mas ela não queria falar comigo. Fui várias vezes até à casa onde ela agora vivia. Ficava lá horas à espera que me dissesse alguma coisa, pois sabia que eu ali estava, à sua espera . E aquilo aconteceu em duas vezes que lá fui. "Aquilo" queria dizer que foi apanhado por duas vezes a conduzir sem carta. À segunda, a coisa estava a sair-lhe cara. Como não deu sinal de si, foi declarado contumaz (uma situação de menoridade cívica, em que se fica impossibilitado de obter documentos e qualquer benefício junto da administração pública). Tinha chegado no dia anterior e veio directamente do tribunal, onde a interdição acabara de ser levantada, para que lhe tomasse conta da situação. "Pois bem, primeiro que tudo, vamos tratar de lhe renovarem os documentos, ouviu?" Posso fumar? "Fume à vontade, homem." Percebi claramente que a busca de si próprio estava longe de ser o empossamento numa identidade que o Estado aleatoriamente lhe iria reconhecer. Para fins completamente alheios a essa busca, que só aqui começara e estava longe, muito longe do seu fim. "Então, e neste tempo todo, o que andou a fazer?" Foi para Espanha, lá me contou. Andou aqui e acolá, trabalhando na agricultura onde calhasse. Olhei para ele. Lembrei-me, não sei porquê, do José Matias, o personagem que deu o nome ao conhecido conto de Eça de Queiroz. O pobre José Matias, cujo amor desesperado e silencioso por Elisa o levou deste mundo! Ou demasiadas inquietações metafísicas e Malebranche. Mas aqui, nem fumos de tragédia, só vidas difíceis. Ocorreu-me também como o egoísmo é vivido de forma subtilmente diferente por homens e mulheres. Os primeiros colocam-se, quase sempre, no centro dos seus problemas. As mulheres, pelo contrário, colocam os seus problemas no centro de tudo. É claro que guardei para mim esta última reflexão. Não fosse ele outra vez rondar a sua Elisa. Sem carta de condução. "Então, começamos por onde? Cartão de contribuinte, ou bilhete de identidade?"
Etiquetas: literatura, prosas
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