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Chocolate

A "Livraria Académica", nome técnico para a lendária papelaria do sr. Casimiro, acaba de fechar as suas portas, no centro da cidade. Foi assim, com as vitrinas tapadas com cartão que a encontrei, na sexta-feira à noite. O facto não me surpreendeu, nem se calhar à maioria daqueles que por lá passavam amiúde. A decadência era notória e a abertura do Vivavi terá precipitado a decisão do encerramento. Vamos então por partes. As memórias que cada um associa a este estabelecimento é uma questão, em grande medida, geracional. Local de tertúlia, de liberdade, quando a opressão política e clerical reinavam, de encontro com os livros. Mas também foi, para muitos, entre os quais me incluo, "mais" uma papelaria, onde se acorria no frenético início das aulas e onde, mais tarde, se encontrava esta ou aquela edição interessante. E era só "ali", naquela "ilha", quando os livros eram preciosos objectos de contrabando. Para quem desconhece a importância da livraria na cultura local, lembro a sua notável evocação, feita numa das exposições do ciclo "A memória das coisas", há uns anos atrás no Paço da Cultura. Todavia, as questões que agora (e para o futuro) se colocam são de outra ordem. Ideias para o espaço? O Américo Rodrigues já deu algumas, bem interessantes, embora não escondendo alguns sinais de descrença quanto à sua viabilidade.
Quanto a mim, o encerramento de um local tão emblemático, quer para a memória local, quer para algumas personalidades ilustres que por lá passaram, deveria motivar uma séria reflexão sobre o modelo de desenvolvimento que se quer para a cidade e, em particular, o papel aí desempenhado pelo chamado comércio tradicional. A propósito, não resisto a invocar aqui um filme extraordinário, a que assisti há una anos. Chamava-se "Chocolate" (2001), de Lasse Hallström, com um notável desempenho de Juliette Binoche. A obra relata, em síntese, a persistência da protagonista em manter uma loja especializada em chocolate, numa povoação dos confins da província. Vencendo obstáculos e resistências de toda a ordem, consegue, por fim, afirmar o seu estabelecimento. E torná-lo, perdoem o trocadilho, o créme de la créme local. "Onde pretendo chegar?", perguntarão os leitores. "Ao verdadeiro cerne da questão", responderei. A reconversão de espaços comerciais de referência devolutos, em áreas vitais das cidades, em novos estabelecimentos, apresentando modelos inovadores e apelativos, é hoje em dia uma opção funfamental, na requalificação do centro das cidades. Na qual participam, naturalmente e em complementaridade, entidades públicas e privadas. O fecho da papelaria do sr. Casimiro tem todas as condiões para se tornar um teste ao empreendorismo, à ambição e à audácia gerados na Guarda. E refiro-me quer à autarquia, quer aos investidores. Como se, parafraseando o célebro quadro de Dali, a persistência da memória fosse aqui uma questão de primeira necessidade.

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