É com algum desapontamento, embora não com surpresa, que vejo muita gente, na blogosfera, nos jornais, em declarações públicas, que se reivindica "de esquerda", mas que não demonstra qualquer tipo de sensibilidade para a realidade social nua e crua. O que inclui, por exemplo, o drama da precaridade no emprego, o empobrecimento de novas franjas da população, a solidão, as recentes formas de exclusão social e até mesmo cultural, etc. São os mesmos que bradam em abstracto contra os papões, os "maus", os tigres de papel que cimentam um imaginário comum com que se constrói uma cumplicidade forçada, um sentimento do "nós", uma superioridade moral que ninguém outorgou. Mas que são incapazes de tomar posição quando se trata de optar entre a defesa das liberdades individuais e a opressão. Veja-se onde a
cegueira ideológica pode levar, a propósito da recente proibição em França do uso da burka e do niqab em edifícios públicos. Cria-se assim uma tela a preto e branco, onde os "maus" são invariavelmente os "outros", os que não se conhecem, os que pensam de outra maneira, os que têm outros gostos, os que estão fora da segurança da casta. No fundo, trata-se de um neotribalismo alimentado por medos auto-insuflados, por fantasmas nascidos da incompreensão dos processos que levam à exclusão, à opressão, à arbitrariedade, à impossibilidade do triunfo do mérito. E como não se querem perceber esses processos - única forma de os combater - agitam-se bandeiras, repartem-se migalhas, apontam-se "culpados", escolhidos invariavelmente entre os "outros", faz-se pela mesma vidinha que se critica nesses "outros". Só que, neste caso, abençoada pelas melhores das intenções...
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